Mundos Plurales. Revista Latinoamericana de Políticas y Acción Pública Vol.10  N.° 2, noviembre 2023, pp. 133-158

ISSN 13909193/e-ISSN 26619075

DOI:10.17141/mundosplurales.2.2023.6038

 

A solidariedade na seguridade social latino-americana em perspectiva comparada

La solidaridad en la seguridad social latinoamericana en perspectiva comparada

Solidarity in Latin American social security in comparative perspective

 

Geralda Luiza de Miranda. Doutora em Ciência Política, professora do Departamento Ciência Política, FAFICH/UFMG.

geraldaluiza@fafich.ufmg.br

 

 

Recibido: 24/08/2023 - Aceptado: 04/11/2023

 

 

Resumo

O artigo tem como objetivo comparar o nível de solidariedade no financiamento da seguridade social de 20 sistemas latino-americanos. Partindo dos conceitos de solidariedade de Marshall e seguridade de Beveridge e da tese de Esping-Andersen, são investigados e pontuados indicadores relativos à estrutura de financiamento da seguridade, que define seu potencial de desmercantilização; à organização da proteção previdenciária, que estabelece as linhas de estratificação das provisões; e aos limiares de tributação, que podem mitigar ou maximizar o potencial de desmercantilização, compondo o Índice de Solidariedade da Seguridade Social. As informações que subsidiam a análise foram coletadas nos portais da ISSA e Cepal e na normatização. A análise mostra a importância da organização da proteção previdenciária e dos limiares de tributação para mitigar e aumentar o potencial de desmercantilização dos sistemas e a variação do índice na região, destacando-se positivamente os sistemas pioneiros e os regimes de repartição.

 

Palavras-chave: América Latina; regime de capitalização; regime de repartição; seguridade social; solidariedade.

 

Resumen

El presente artículo tiene como objetivo comparar el nivel de solidaridad en el financiamiento de la seguridad social en 20 sistemas latinoamericanos. Con base en los conceptos de solidaridad de Marshall, de seguridad de Beveridge y en la tesis de Esping-Andersen, se investigan y puntúan indicadores relacionados con la estructura de financiamiento de la seguridad, lo que define su potencial de desmercantilización, la organización del régimen de reparto/capitalización, que establece las líneas de estratificación de las provisiones, y los umbrales de tributación, que pueden mitigar o maximizar el potencial de desmercantilización, componiendo el índice de solidaridad de la seguridad social. La información que sustenta el análisis fue recolectada de los portales de la ISSA y la CEPAL. El análisis muestra la importancia de organizar la protección de la seguridad social y los umbrales de cotización para mitigar y aumentar el potencial de desmercantilización de los sistemas y la variación del índice en la región, destacando positivamente los sistemas pioneros y los regímenes de reparto.

 

Palabras clave: América Latina, sistema de capitalización, sistema de reparto, seguridad social, solidaridad.

 

Abstract

The objective of this article is to compare the level of solidarity in the financing of social security in 20 Latin American systems. Departing from Marshall's concepts of solidarity, Beveridge's security, and Esping-Andersen's thesis, indicators related to the financing structure of security are investigated and scored, thereby defining the potential for decommodification; the organization of the distribution/capitalization regime, which establishes stratification lines of the provisions; and taxation thresholds, which can mitigate or maximize the potential for decommodification found in the Social Security Solidarity Index. The information that supports this analysis was collected from the ISSA and ECLAC portals. The analysis shows the importance of organizing social security protection and contribution thresholds in order to mitigate and increase the potential for decommodification of the systems and the variation of the index in the region, thereby positively highlighting pioneering systems and pay-as-you-go regimes.

 

Keywords: Latin America, capitalization system, pay-as-you-go system, social security, solidarity

 

 

Introdução

 

Marshall (1965) destaca os traços distintivos do seguro social compulsório relativamente ao seguro privado, especificamente, a solidariedade no financiamento e a suficiência dos benefícios, ao analisar a evolução do primeiro nos países desenvolvidos, no início do século XX[i]. Sua análise é tributária da concepção de seguridade social de Beveridge (1942), a mesma que inspirou a Organização Internacional do Trabalho (OIT) no estabelecimento das Normas Mínimas da Seguridade Social (Convenção 102), em 1952. Para Beveridge, toda a população deveria acessar as provisões da seguridade, estabelecendo, assim, a solidariedade entre gerações e entre saudáveis e doentes; o financiamento deveria ser tripartite (empregadores, trabalhadores e Estado); e os benefícios básicos, universais. Suas provisões deveriam cobrir encargos familiares, especialmente de famílias pobres, e os riscos sociais típicos das sociedades industriais, destacadamente, doença, velhice, invalidez, morte, acidentes ocupacionais e desemprego.

As estratégias mobilizados pelo Estado no esforço de construção do seguro social, de acordo com Marshall, foram três: a reunião de riscos entre os trabalhadores, especialmente para o financiamento dos benefícios destinados à cobertura dos riscos de doença e acidentes ocupacionais; a suplementação das contribuições de trabalhadores com outras receitas, dentre elas, a contribuição de empregadores e impostos gerais; e, por fim, o aumento no valor dos benefícios, especialmente os destinados à velhice, também mediante a estratégia de suplementação das contribuições com recursos oriundos de impostos gerais, incentivando assim, ao assegurar a suficiência dos benefícios, a continuidade dos aportes dos trabalhadores.

Historicamente, o financiamento tripartite tem sido operacionalizado pelo regime de repartição, que estabelece a solidariedade em três sentidos: entre trabalhadores, reunindo suas contribuições para o enfrentamento de riscos compartilhados; dos empregadores para com os trabalhadores, sendo suas contribuições acrescidas às dos trabalhadores; do Estado, portanto, da sociedade em geral, para com os beneficiários, complementando as contribuições de trabalhadores e empregadores e arcando com os custos das provisões não-contributivas.

Na América Latina, a construção da seguridade teve início nas duas primeiras décadas do século XX, intensificando-se até 1970. Com variações importantes entre os países, foram ampliados os riscos cobertos; a ela incorporados diferentes segmentos de trabalhadores; e estendida sua cobertura a segmentos excluídos do mercado de trabalho ou nele inseridos de forma precária. Os sistemas que se consolidaram ao final da década de 1970 compuseram uma paisagem homogênea na região, no que se refere ao regime financeiro da previdência social – o regime de repartição -, embora apresentassem variação importante quanto ao período de criação de seus programas de pensões e nível de desenvolvimento, fatores que levaram Mesa-Lago (1985, 2005, 2007) a classificá-los em pioneiros, intermediários e retardatários. Nas décadas seguintes, foram desencadeadas reformas que diversificaram significativamente a magnitude e sentidos da solidariedade. Na primeira, nos anos 80 e 90, foram feitas reformas dos sistemas previdenciários, mantendo o regime de repartição, mas alterando seus parâmetros (reformas paramétricas) ou adotando o regime de capitalização de forma exclusiva ou combinada com o regime de repartição, constituindo regimes mistos ou paralelos (reformas estruturais), as quais eliminaram ou reduziram a participação de empregadores e do próprio Estado no financiamento das provisões por idade avançada. A segunda onda de reformas, no século XXI, abrange a disseminação de programas de transferência de renda não-contributivos para idosos, frequentemente denominados ‘pensões sociais’, aumentando, assim, a solidariedade da sociedade em geral para com os beneficiários (Barrientos 2004, 2022; Mesa-Lago 2007, 2020; Cantu 2015; Ortiz et al. 2018; Cardozo 2020; Carrera e Angelaki 2022; La Torre e Rudolph 2023).

O objetivo deste artigo é investigar e mensurar os parâmetros que estruturam a solidariedade dos sistemas de seguridade latino-americanos atuais, compondo o Índice de Solidariedade da Seguridade Social, que permite comparar e classificar esses sistemas em uma dimensão ainda não investigada. O universo da análise é constituído por 20 países. As informações mobilizadas na análise foram coletadas no portal da International Social Security Association (ISSA), Cepal e nas leis que estruturam a seguridade dos países.

O modelo de análise se estrutura nos termos do método comparativo de casos com base em variáveis (Lijphart 1971; George e Bennett 2005). Parte dos conceitos de seguridade social de Beveridge (1942) e de solidariedade de Marshall (1965) e do argumento de Esping-Andersen (1990) de que os regimes estatais de bem-estar social (o Welfare State) podem ser distinguidos quanto aos níveis de desmercantilização da força-de-trabalho e de estratificação social que promovem. Tendo por referência o conceito de seguridade de Beveridge, os benefícios são classificados quanto ao seu objetivo (proteção previdenciária, do trabalho e da família e serviços de saúde) e natureza (contributivo e não-contributivo), o que possibilita, nos termos de Sartori (1970), a comparação de sistemas com trajetórias de construção e estruturas de gestão relativamente distintas. O argumento que estrutura esse modelo é derivado da tese de Esping-Andersen (1990): o potencial de solidariedade da seguridade social resulta de (a) seu potencial de desmercantilização, dado por sua estrutura de financiamento, que pode ser (b) mais ou menos mitigado pelo nível de estratificação impresso na organização da proteção previdenciária e (c) mais ou menos mitigado ou potencializado pelos limiares de tributação definidos para trabalhadores e empregadores.

Na primeira seção, com base em estudos comparativos, são apresentadas as linhas gerais da evolução e configuração dos sistemas de seguridade social latino-americanos, que se refletem nas avaliações dos regimes de bem-estar em que se inserem; na segunda, são investigados e mensurados a magnitude e os sentidos da solidariedade, compondo o Índice de Solidariedade, com base no qual os 20 sistemas são comparados e classificados. Na conclusão, destacam-se a importância do desenho da organização da proteção previdenciária e dos limiares de tributação para mitigar e ou aumentar o potencial de desmercantilização da estrutura de financiamento da seguridade e a variação do índice conforme os tipos de sistemas e regimes.

 

 

A seguridade social nos regimes de bem-estar latino-americanos

 

Na América Latina, as primeiras provisões da seguridade foram criadas no final do século XIX, destinando-se a segmentos específicos, como militares e magistrados, ampliando-se para outros segmentos do setor público no início do século XX. Para os trabalhadores do setor privado, que compõem a grande massa da população economicamente ativa, o ritmo da construção se intensificou a partir da década de 1920, incorporando, primeiro, os setores mais bem organizados, como bancários, industriários e comerciários, e, em tempos e formatos distintos, trabalhadores rurais e domésticos e segmentos inseridos precariamente ou não passíveis de inserção no mercado de trabalho, como trabalhadores informais e pessoas com deficiência. Houve certa coincidência no período de consolidação das diferentes provisões: as destinadas aos riscos ocupacionais, especificamente doença e acidente profissionais foram instituídas no início do século XX; na sequência, foram institucionalizadas as provisões destinadas aos riscos de idade avançada, morte, doença e invalidez; e, no século XXI, intensificaram-se as pensões sociais e as provisões componentes do que Beveridge denominou encargos familiares, especificamente provisões não-contributivas destinados a famílias de baixa renda (Mesa-Lago 1985, 2004, 2007, 2020; Carpenter 2020; Filgueira 2015; Rossel e Filgueira 2015; Cantu 2015; Abramo, Cecchini e Morales 2019; Cardozo 2020).

Na pesquisa sobre os sistemas de seguridade, a principal contribuição é de Mesa-Lago que, ainda no final da década de 1970, classifica-os em três tipos: pioneiros, intermediários e retardatários, com base em dois critérios: antiguidade do programa de pensões e nível de desenvolvimento da seguridade, avaliado, entre outras coisas, pelo grau de cobertura e configuração dos programas. Em seu trabalho de 1985, atribuindo peso maior ao segundo critério, Mesa-Lago classifica como pioneiros a Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Cuba e Uruguai, cujos programas de pensões foram instituídos nos anos 20 e 30, exceto Costa Rica, que teve esse programa instituído nos anos 40. Esses sistemas apresentavam maior cobertura, desenvolvimento e estratificação dos programas, altos custos, portanto, financiamento maior, e déficits crescentes. Como intermediários são classificados a Bolívia, Colômbia, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela, cujos programas foram constituídos nos anos 40 e apresentavam cobertura e estratificação menores e melhor situação financeira que os pioneiros; e, por fim, como retardatários, a República Dominicana, Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Honduras e Haiti, com programas constituídos nos anos 50 e 60 e sistemas com menos problemas financeiros e estratificação baixa, mas menos desenvolvidos e com menor cobertura. No trabalho de 2004, Mesa-Lago revisa a classificação feita em 1985. Ainda privilegiando a dimensão relativa ao nível de desenvolvimento da seguridade, mantém o posicionamento da Costa Rica no grupo de pioneiros e desloca o Paraguai para o grupo de retardatários.

As avaliações dos regimes de bem-estar latino-americanos refletem a evolução e configuração da seguridade, mas incorporam outras políticas sociais, como a educação. Algumas apontam a convergência dos regimes nos dois principais períodos do desenvolvimento econômico da região, caracterizados pelo modelo de substituição de importações (MSI) até o final da década de 1970, e pelo neoliberalismo após 1980. No primeiro período, esses regimes se caracterizavam, segundo Fleury e Molina (2000), pela estratificação da seguridade e exclusão de população não inserida no mercado de trabalho formal e, segundo Draibe e Riesco (2011), pelo conservadorismo e meritocracia. Segundo Fiori (1997), esses regimes eram, no primeiro período, Welfare States periféricos, atrofiados, e se degradaram, no segundo período, com a remercantilização da força-de-trabalho. Para Mejía-Ortega e Franco-Giraldo (2002), as políticas sociais que, no primeiro período, colocavam foco nos assalariados evoluíram para políticas atomizadas, seletivas e centradas em seguros privados no segundo período. A avaliação de Barrientos (2004) é semelhante, mas destaca a informalidade na provisão do bem-estar na região: no primeiro período, os regimes convergiram para o tipo conservador-informal, com programas públicos restritos a trabalhadores inseridos no mercado de trabalho formal, ficando a provisão do bem-estar dos trabalhadores excluídos desse mercado e idosos de baixa renda a cargo do mercado informal e das famílias, quadro que se degrada no segundo período, em que os regimes convergem para o tipo liberal-informal, que acrescenta à informalidade, o residualismo, fragmentação e estratificação das provisões, processos agravados com as iniciativas de desregulamentação do mercado de trabalho (Krein e Colombi 2019).

Diversos comparativistas apontam a divergência dos regimes latino-americanos, seja explicando sua variação com base em fatores econômicos, sociais e políticos ou tipos de provedores (Estado, mercado e famílias) e classificando-os em diferentes dimensões, como cobertura, gastos e resultados (Filgueira 2005; Barba 2007; Rudra 2008; Franzoni Martínez 2005, 2008; Pribble 2011; Barbosa 2022; Niedzwiecki e Pribble 2023) seja apenas os descrevendo e classificando pelo desempenho dos diferentes provedores (Huber e Stephens 2005; Uthoff, Vera e Ruedi 2006; Segura-Ubiergo 2007; Cruz-Martínez 2014; Cecchini, Filgueira e Robles 2014). Os trabalhos de Cantu (2015) e Mesa-Lago (2020) sistematizam e atualizam contribuições importantes para a discussão aqui desenvolvida.

Cantu (2015) reúne diferentes perspectivas analíticas e, também com base em variáveis quantitativas, classifica os regimes, qualificando e atualizando as conclusões dos estudos mais recentes. Tendo como foco o mix público-privado na produção de bem-estar, seu objetivo é avaliar as consequências das reformas das últimas décadas. Argumenta que, no geral, elas tornaram os sistemas mais complexos, introduzindo, ao lado da participação do Estado, a participação do mercado como princípio da política social. Nas alterações processadas desde o final da década de 1990, Cantu (2015) destaca as seguintes tendências: (i) multiplicação dos programas de transferências condicionadas de renda (PTC), que garantem amparo estatal mínimo aos pobres, mas, simultaneamente, significam “abandono das pretensões desmercantilizantes expressas no regime conservador (informal) anterior” (p. 47-8); (ii) estabilidade de matrículas no setor privado; (iii) estabilidade dos gastos privados com saúde; e (iv) manutenção da informalidade alta. Ao verificar que a alteração mais relevante é a disseminação dos PTC, Cantu concorda com Barrientos (2004) na avaliação de que os regimes convergem para o tipo liberal-informal, diferenciando-se, no entanto, quanto ao papel desempenhado pelo Estado, mercado e famílias na produção do bem-estar.

Mesa-Lago (2020), com foco na seguridade social, analisa os efeitos das reformas estruturais privatizantes sobre diferentes dimensões dos nove sistemas que as realizaram (Chile, Costa Rica, Uruguai, Panamá, República Dominicana, Colômbia, México, El Salvador e Peru), comparando-os entre si e com os aqueles que mantiveram o regime de repartição. Entre outros achados, relacionam-se com a discussão aqui desenvolvida os seguintes: (i) nos sistemas privatizados, a cobertura da população economicamente ativa caiu entre o ano das reformas e 2004, voltando a crescer, em oito deles, entre 2009-10 e 2017-18; (ii) a cobertura da população inativa (65 anos e mais) aumentou na grande maioria dos sistemas, mas esse resultado se deve mais ao crescimento das pensões não-contributivas, que respondem por cobertura maior que a lograda com pensões contributivas em 13 dos 17 países que possuem as duas modalidades; (iii) nos sistemas privatizados, o princípio da solidariedade foi substituído pelo da equivalência, deixando a cargo do Estado os mecanismos de transferência “entre gerações, entre grupos de renda e entre gêneros” (p. 41); (iv) a equidade de gênero é menos contemplada nos sistemas privados que nos sistemas públicos, que exigem número menor de anos de contribuição, valorizam mais os últimos anos da vida ativa e utilizam tabelas de mortalidade unissex; (v) a suficiência dos benefícios é semelhante nos sistemas públicos e privatizados, dado que estes garantem um benefício mínimo ao final do período estipulado para cotizações, mesmo que o segurado não tenha acumulado os recursos requeridos.

Destacada a diversidade na configuração dos regimes de bem-estar latino-americanos e, de forma mais específica, de seu principal componente, a seguridade social, são investigados, na próxima seção, a magnitude e os sentidos da solidariedade, compondo o Índice de Solidariedade.

 

 

Sentidos e medidas da solidariedade na seguridade social latino-americana

 

Os 20 países que compõem o universo da análise aqui desenvolvida, conforme sintetizado na Tabela 1, possuem sistemas de seguridade social que se distribuem nos três tipos definidos por Mesa-Lago (seis pioneiros, sete intermediários e sete retardatários) e têm a sua proteção previdenciária organizada em quatro tipos de regime financeiro: nove adotam o de repartição; seis combinam aspectos dos regimes de repartição e de capitalização, constituindo regimes mistos; dois possuem regimes de repartição e capitalização funcionando paralelamente; por fim, três, adotam a capitalização, que coexiste com pilares solidários. A expectativa é de que o índice varie com o tipo de regime financeiro em que se organiza a proteção previdenciária, sendo maior nos regimes de repartição, e com o tipo de sistema de seguridade, sendo maior nos pioneiros e intermediários, em decorrência, respectivamente, da cessação da contribuição de empregadores e ou do Estado no financiamento dos benefícios por idade avançada nos sistemas que incorporaram a capitalização e de maiores cobertura e nível de desenvolvimento dos sistemas mais antigos.

A investigação e mensuração da magnitude e sentidos da solidariedade tem como ponto de partida a distinção de três dimensões dos sistemas de seguridade: (i) a Organização da Proteção Previdenciária, indicadora das linhas de distribuição do financiamento das aposentadorias e pensões entre os segurados; (ii) a Estrutura de Financiamento da seguridade social, indicadora dos atores que contribuem para a política e da magnitude de sua contribuição; (iii) os Limiares de Tributação da folha de salários, base da contribuição dos empregadores, e da remuneração/ganhos, base da contribuição dos trabalhadores.

Como antecipado, esse modelo de análise se sustenta no argumento de que (i) a dimensão Estrutura de Financiamento define o potencial de desmercantilização da seguridade, isto é, sua capacidade de garantir cobertura adequada da população relativamente aos riscos sociais a que se referem os benefícios, e em valores suficientes à subsistência, no caso das aposentadorias e pensões. Para além do fato de que a realização desse potencial depende do nível de formalização do emprego, que maximiza a arrecadação das contribuições de trabalhadores e empregadores, um grande desafio na América Latina, como visto na seção precedente, esse potencial pode ser (ii) mais ou menos mitigado pela dimensão Organização da Proteção Previdenciária, que estabelece as linhas de distribuição dos recursos entre os segurados, estratificando mais ou menos as provisões, ou (iii) mais ou menos mitigado ou potencializado pela dimensão Limiares de Tributação da folha salarial e da remuneração/ganhos se eles forem regressivos ou progressivos, respectivamente. No que segue, os indicadores definidos para cada uma dessas dimensões são descritos e pontuados negativa ou positivamente, equalizando, assim, medidas diferentes (alíquotas de contribuição, gastos públicos, limiares de tributação, parâmetros qualitativos) para a composição do Índice de Solidariedade.

 

Dimensão Organização da Proteção Previdenciária

 

Os indicadores da dimensão Organização da Proteção Previdenciária, apresentados e pontuados na Tabela 1, são três: Estrutura, Aportes para Contas Individuais e Segmentação. O primeiro se refere à existência ou não de sistemas diferentes para trabalhadores dos setores público e privado, recebendo pontuação negativa de um ponto (-1) os países que possuem sistemas dualistas, na medida em que esse desenho impede a solidariedade entre trabalhadores desses dois grandes setores, e zero (0) ponto aqueles que possuem apenas um sistema para os trabalhadores dos dois setores. O indicador Aportes Contas Individuais refere-se à existência ou não de aportes para contas individuais destinadas ao financiamento das aposentadorias por idade avançada e a origem desses aportes, recebendo pontuação negativa de um ponto (-1) os sistemas que estabelecem essas contas, ou seja, os sistemas que incorporam a capitalização (de forma exclusiva, mista ou paralela), na medida em que esse desenho impede a solidariedade entre os trabalhadores (a reunião de riscos), acrescido de mais um ponto negativo (-1), no caso de os aportes serem feitos exclusivamente pelos trabalhadores, dado que esse desenho prejudica a solidariedade entre empregadores e trabalhadores. Os sistemas que permitem a opção entre os regimes de capitalização e repartição e aqueles em que as contas individuais não vinculam o conjunto dos trabalhadores recebem apenas a metade da pontuação negativa. Por fim, o indicador Segmentação refere-se à existência ou não de esquemas previdenciários separados para categorias específicas de trabalhadores, atribuindo-se pontuação negativa de dois décimos (-0,2) a cada esquema existente, também por prejudicarem a solidariedade entre trabalhadores.


Tabela 1. Indicadores selecionados da solidariedade na Organização da Proteção Previdenciária, por tipo de regime e país, 2018

País

Regime Financeiro

Indicadores

Pontuação

Estrutura

Aportes contas individuais

Segmentação

Estrutura

Aportes contas individuais

Segmentação

Total

Argentina

Repartição

Única

Não

Forças Armadas; Forças Segurança; Professores; Judiciário; Setor energia.

0

0

-1

-1

Brasil

Repartição

Dualista

Não

Forças Armadas; Forças Segurança; Congressistas; Judiciário; Ministério Público.

-1

0

-1

-2

Chile

Capitalização

Dualista

Trabalhador

Forças Armadas; Forças Segurança; Ferroviários; Portuários; Marinheiros.

-1

-2

-1

-4

Costa Rica

Repartição E Capitalização

Única

Trabalhador e empregador

Judiciário; Professores.

0

-1

-0,4

-1,4

Cuba

Repartição

Única

Não

Forças Armadas; Ministério Interior.

0

0

-0,4

-0,4

Uruguai

Repartição | Capitalização

Única

Trabalhador

Forças Armadas; Forças Segurança; Bancários; Notários; Graduados.

0

-1

-1

-2

Pioneiros

-0,33

-0,67

-0,80

-1,80

Bolívia

Repartição E Capitalização

Única

Trabalhador e empregador

--

0

-1

0

-1

Colômbia

Repartição E Capitalização

Única

Trabalhador e empregador

Forças Armadas; Forças Segurança; Petroleiros.

0

-1

-0,6

-1,6

Equador

Repartição

Única

Não

Forças Segurança.

0

0

-0,2

-0,2

México

Repartição E Capitalização

Dualista

Trabalhador e empregador

Forças Armadas; Petroleiros.

-1

-1

-0,4

-2,4

Panamá

Repartição E Capitalização

Única

Trabalhador

--

0

-1

0

-1

Peru

Repartição OU Capitalização

Única

Trabalhador

Forças Armadas; Forças Segurança; Diplomatas; Setor Público.

0

-1

-0,8

-1,8

Venezuela

Repartição

Única

Não

Forças Armadas.

0

0

-0,2

-0,2

Intermediários

-0,14

-0,71

-0,31

-1,17

Continua

 

Conclusão

País

Tipo

Indicadores

Pontuação

Estrutura

Aportes contas individuais

Segmentação

Estrutura

Aportes contas individuais

Segmentação

Total

El Salvador

Capitalização

Única

Trabalhador e empregador

--

0

-1

0

-1

Guatemala

Repartição

Dualista

Não

Militares.

-1

0

-0,2

-1,2

Haiti

Repartição

Dualista

Não

--

-1

0

0

-1

Honduras

Repartição E Capitalização

Única

Trabalhador e empregador

Militares; Poder Executivo; Professores.

0

-1

-0,6

-1,6

Nicarágua

Repartição

Única

Não

Militares; Forças de Segurança.

0

0

-0,4

-0,4

Paraguai

Repartição

Dualista

Não

Militares; Forças de Segurança; Professores; Ferroviários; Bancários; Estivadores.

-1

0

-1,2

-2,2

Rep. Dominicana

Capitalização

Única

Trabalhador e empregador

Judiciário; Legislativo; Banco Central; Professores; Ministério das Finanças.

0

-1

-1

-2

Retardatários

-0,43

-0,43

-0,49

-1,34

Repartição

-0,44

0,00

-0,51

-0,96

Capitalização

-0,33

-1,33

-0,67

-2,33

Mistos

-0,17

-1,0

-0,33

-1,50

Paralelos

0,00

-1,00

-0,90

-1,90

Média Geral

-0,30

-0,60

-0,52

-1,42

Elaboração própria.


Como antecipado, nos 20 sistemas analisados, há diferentes formas de organização da proteção previdenciária: nove adotam o regime de repartição (Argentina, Brasil, Cuba, Equador, Venezuela, Guatemala, Haiti, Nicarágua e Paraguai); seis combinam aspectos dos regimes de repartição e de capitalização, constituindo regimes mistos (Costa Rica, Bolívia, Colômbia, México, Panamá e Honduras), sendo que, no Panamá, as contas individuais são fundadas com aportes que incidem apenas sobre a parte mais alta dos ganhos; dois (Uruguai e Peru) instituíram os regimes de repartição e capitalização que funcionam paralelamente, sendo que, no Uruguai, o primeiro é destinado aos trabalhadores de renda mais baixa, e o de capitalização, aos de renda intermediária, e, no Peru, permite-se a opção por um ou outro; por fim, em três países (Chile, El Salvador e República Dominicana), o regime de capitalização coexiste com pilar solidário, que abrange aposentadorias por invalidez e pensão de sobrevivente .

Na pontuação desses indicadores, verifica-se que o desenho da organização da proteção previdenciária na região possui efeito de estratificação social negativo (média geral de -1,42 pontos). Ao contrário do preconizado nas reformas estruturais, esse efeito é maximizado nos sistemas que adotam o regime de capitalização, relativamente aos que mantiveram o de repartição (-0,96), adquirindo a pontuação mais negativa entre aqueles que adotaram a capitalização de forma exclusiva (-2,33), seguidos pelos que a adotam de forma paralela (-1,9) e mista (-1,5). Como constatado por Mesa-Lago (1985, 2004) e Filgueira (2005), o nível de estratificação é maior nos sistemas pioneiros (-1,8), mas, contrariando a avaliação de Mesa-Lago, os sistemas retardatários superam os intermediários nesse aspecto (-1,34 e -1,17, respectivamente). Entre os países, os que mais estratificam as provisões são Chile, México e Paraguai, e os que estratificam menos, Equador, Venezuela, Cuba e Nicarágua.

 

Dimensão Estrutura de Financiamento da Seguridade Social

 

Os indicadores da dimensão Estrutura de Financiamento são três, remetendo diretamente para as três principais fontes de recursos para o custeio das provisões: empregadores, trabalhadores e Estado.

As provisões da seguridade social são aqui classificadas quanto ao seu objetivo: proteção previdenciária, do trabalho e da família e serviço de saúde, e o tipo de financiamento: contributivo e não-contributivo, na perspectiva do trabalhador. A classificação quanto ao objetivo vincula o benefício ao risco que se pretende enfrentar, nos termos de Beveridge, sendo o serviço de saúde destinado ao risco de doença; a proteção previdenciária, aos riscos de velhice, invalidez e morte; a proteção do trabalho, à cobertura de riscos ocupacionais (acidente e doença profissional) e desemprego; e, por fim, a proteção da família constituída pelos benefícios destinados a cobrir encargos familiares, destinando-se a famílias com crianças e adolescentes, gestantes etc. ou à proteção em situações críticas, como matrimônio, gravidez. Quanto à natureza, as provisões contributivas são as financiados por trabalhadores, isoladamente ou junto com empregadores e ou governos, e as não-contributivas, pelo Estado ou apenas por empregadores, como é o caso das que compõem, em todos os sistemas, a proteção contra acidentes ocupacionais e, em alguns países, a proteção da família.

Na Tabela 2, é apresentado o detalhamento da contribuição de trabalhadores e empregadores para o custeio das quatro provisões. Para a compreensão das informações, quatro pontos merecem destaque. Primeiro, o foco da análise são os benefícios e serviços que compõem a seguridade em nível nacional, não abrangendo, portanto, aqueles providos pelos governos subnacionais, no caso de sistemas federativos. Segundo, as contribuições compiladas têm por referência o conceito de seguridade adotado, que é o mesmo que organiza as informações da ISSA. Sendo assim, elas não mantêm, necessariamente, relação com a estrutura de gastos ou de gestão das políticas sociais dos países. Exemplo desse descolamento é a contribuição dos empregadores no Brasil, para o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Embora normativamente desenhado e empiricamente destinado a garantir proteção nas situações de desemprego, os recursos não são alocados no ‘caixa’ da seguridade. Terceiro, não foram consideradas, por não serem comparáveis, as contribuições que não incidem sobre os ganhos cobertos ou a folha salarial; por exemplo, a que é feita também por empregadores sobre o faturamento, que compõe os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) que financia o seguro desemprego no Brasil. Quarto, a estrutura de financiamento considerada é a referida a seguridade do trabalhador do setor privado, ou seja, não abrange a que é referida ao trabalhador do setor público e os esquemas especiais.

No tratamento das informações da Tabela 2, foram adotadas as seguintes estratégias: (i) na totalização da contribuição de trabalhadores e empregadores, foram consideradas as alíquotas máximas para a proteção previdenciária e para serviço de saúde; as mínimas, indicadas nas notas da tabela, são normalmente destinadas a segmentos da população que possuem ganhos menores, que terão, consequentemente, acesso a benefícios em valores menores. No caso de o intervalo entre alíquotas mínima e máxima ter grande amplitude, foi computada a mediana; (ii) não foram computadas as alíquotas destinadas ao custeio dos riscos ocupacionais, dado que, primeiro, em alguns sistemas, a legislação consultada estabelece apenas sua variação conforme o grau de risco da atividade, sendo a regulamentação feita em instrumentos infralegais; segundo, quando elas são explicitadas, a amplitude do intervalo varia muito entre os casos. Destaca-se que essa decisão não impacta o posicionamento dos sistemas no Índice de Solidariedade, dado que todos contam com essa provisão e, em todos, ela é financiada exclusivamente pelos empregadores. Por fim, considerando a variação entre os sistemas quanto à existência ou não de contribuições específicas para as quatro provisões aqui consideradas, com alguns destinando às quatro provisões uma mesma contribuição, a inexistência de contribuições para determinada provisão é indicada por um hífen (-) e, quando determinada alíquota é destinada ao financiamento de mais de uma provisão, essa alíquota é centralizada na célula mesclada ou indicada em notas. Para mais clareza das informações, são mantidas as linhas de grade internas da tabela.


Tabela 2. Indicadores selecionados da participação de trabalhadores e empregadores no financiamento da seguridade, por tipo de provisão e país, 2019 (%)

 

Provisão

Argentina

Brasil

Chile

Costa Rica

Cuba

Uruguai

Bolívia

Colômbia

Equador

México

Trabalhador

Previdenciária

11(1)

11(1))

11,25(2)

4,84(3)

5(1)

15(1)

17,21(2)

5,5(2)

6,74(2)

1,75(2)

Da Família

-

7

5,5

-

-

Saúde

6

-

6,25(4)

-

4

-

1,03

Riscos ocupacionais

-

-

-

-

-

-

-

-

-

Desemprego

-

-

0,64

-

-(5)

-

-

-

-

Contribuição total-ganhos

17

11

18,89

10,34

5

21,25

17,21

9,5

6,74

2,78

Empregador

Previdenciária

12,53(1)

20(1)

1,53(2)

8,33(3)

14,5

7,5

3(2)

12

2,22

6,9(2)

Da Família

5,48(1))

-

5

-

13

4

1

Saúde

7,59(1)

-

-

9,25

5

10

8,5

9

1,8

Riscos ocupacionais

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Varia

Desemprego

1,09 (0,92)

8

2,4

1,5

-(5)

-

-(6)

1

Varia

Contribuição total-folha

26,69

28

3,93

24,08

14,5

12,5

26

24,5

12,22

9,7

 

 

Provisão

Panamá

Peru

Venezuela

El Salvador

Guatemala

Haiti

Honduras

Nicarágua

Paraguai

Dominicana

Trabalhador

Previdenciária

9,25

13(8)

4

7,25

1,83

6

4(2)

4,75

9

2,87(24)

Da Família

--

--

--

--

-

Saúde

0,5

-

3,0

2

3

2,5

2,25

3,04

Riscos ocupacionais

-

-

-

1

--

--

--

-

Desemprego

-

-

0,5

--

--

--

--

--

-

-

Contribuição total-Ganhos

9,75

13

4,5

10,25

4,83

9

6,5

7

9

5,91

Empregador

Previdenciária

4,25

-

11

7,75

3,67

6

5(2)

12,5

14

7,1(2)

Da Família

-

-

-

-

-

-

Saúde

8

9(1)

7,5

4

3

5

6

7,09

Riscos ocupacionais

Varia

Varia

Varia

3

Varia

Varia

1,5

Varia

Desemprego

0,75(7)

1,39(7)

2

Varia (9)

Varia (9)

-

1,98

Varia (9)

 

Varia

Contribuição total-folha

13

10,39

13

15,25

10,67

9

11,98

20

14

14,19

Elaboração própria.

Notas: (1) Há percentuais menores para trabalhadores/empregadores em posições desfavoráveis; (2) Inclui percentuais destinados à conta individual e ao pilar solidário; (3) Somadas as contribuições para repartição e capitalização; (4) Acrescida da mediana do intervalo de contribuição; (5) Compõe a contribuição previdenciária; (6) Compõe a proteção da família; (7) Estimativa de cota mensal; (8) Se for capitalização, 10%; (9) Apenas demissões injustas.


Com base nas informações da Tabela 2, podem ser destacados quatro aspectos relativos à distribuição da contribuição de trabalhadores e empregadores para as quatro provisões aqui considerados, quais sejam:

 

(i)              Todos os sistemas possuem provisões para todos os riscos sociais considerados por Beveridge, sendo a única exceção os sistemas boliviano e haitiano, que não possuem qualquer provisão para o desemprego. Certamente, isso não significa que a qualidade dos benefícios seja a mesma em todos os sistemas analisados; por exemplo, em quatro dos sete sistemas retardatários, o seguro desemprego é acessível apenas aos trabalhadores demitidos injustamente;

 

(ii)            As provisões que compõem a proteção do trabalho são não-contributivas para o trabalhador, sendo a responsabilidade por seu financiamento predominantemente dos empregadores em todos os sistemas. No provimento das garantias contra os riscos ocupacionais, essa responsabilidade é sempre exclusiva; no caso do seguro desemprego, os empregadores a compartilham, nos sistemas uruguaio e venezuelano, com trabalhadores e, no sistema chileno, com trabalhadores e Estado;

 

(iii)           A previsão de contribuição de empregadores e trabalhadores para a proteção da família é bastante variada, aparecendo isoladamente ou junto com a contribuição previdenciária definida para trabalhadores e empregadores. Nos sistemas retardatários, essa proteção é residual, aparecendo apenas na Nicarágua e Paraguai; nos pioneiros e intermediários, ela é regra, inexistindo apenas no Peru. Destaca-se ainda que, no Chile e Uruguai, essa proteção é financiada apenas pelos trabalhadores, e, na Argentina, Bolívia, Colômbia e Equador, apenas pelos empregadores.

 

(iv)           Praticamente todos os sistemas preveem contribuições específicas para os serviços de saúde, de forma isolada ou junto com as previstas para as proteções previdenciária e da família. A exceção é o sistema brasileiro, no qual os serviços de saúde ofertados pelo Sistema Único de Saúde universal são financiados com recursos da União, estados e municípios. Destaca-se ainda que, no Chile, a provisão de saúde é assegurada apenas por contribuições dos trabalhadores, e, na Bolívia, Equador e Peru, apenas com contribuições de empregadores.

 

A participação do Estado no financiamento da seguridade cobre variadamente provisões contributivas e não-contributivas destinadas, respectivamente, aos trabalhadores formais e à população de baixa renda. Na Tabela 3, são descritos os aspectos cobertos pelos governos na proteção previdenciária contributiva, a existência ou não de programas não-contributivos de proteção previdenciária e da família e a natureza dos serviços públicos de saúde; do lado direito da tabela, são indicados os gastos públicos sociais parciais e totais- destinados à Proteção Social (que abrange os benefícios não-contributivos de proteção previdenciária e da família) e à serviços de Saúde não-contributivos.

 

Tabela 3. Indicadores selecionados da participação do Estado no financiamento da seguridade, por tipo de provisão e país, 2018-2019

País

Proteção Social

Saúde Não-Contributiva

Gasto Social (% do PIB)

Previdenciária Contributivas

Previdenciária Não-Contributiva

Família Não-Contributiva

Proteção Social

Saúde

Total

Argentina

Déficits

Sim

Sim

Público

10,59

0,78

11,36

Brasil

Déficits

Sim

Sim

Universal

12,74

2,16

14,90

Chile

Custo parcial

Sim

Sim

Público

6,13

5,18

11,30

Costa Rica

Custo parcial

Sim

Sim

Residual

4,11

0,77

4,88

Cuba

Déficits

--

Sim

Universal

6,88

0,72

7,61

Uruguai

Déficits

Sim

Sim

Residual

7,25

3,54

10,78

Pioneiros

7,95

2,19

10,14

Bolívia

Custo parcial

Sim

Sim

Residual

3,32

2,29

5,60

Colômbia

Custo parcial

Sim

Sim

Residual

5,60

3,24

8,84

Equador

Custo parcial

Sim

Sim

Residual

2,81

2,67

5,48

México

Custo parcial

Sim

Sim

Residual

3,92

1,00

4,92

Panamá

Custo parcial

Sim

Sim

--

1,26

1,83

3,09

Peru

Custo parcial

Sim

Sim

Residual

2,97

2,40

5,38

Venezuela

Déficits

Sim

--

Residual

8,71

3,23

11,94

Intermediários

4,08

2,38

6,47

El Salvador

Déficits

Sim

Sim

Residual

2,33

2,37

4,69

Guatemala

Custo parcial

Sim

--

--

1,38

1,29

2,67

Haiti

Déficits

Sim

--

--

0,33

0,49

0,82

Honduras

Custo parcial

--

Sim

--

0,44

2,29

2,73

Nicarágua

Custo parcial

--

--

Residual

0,69

3,56

4,25

Paraguai

Custo parcial

Sim

Sim

Residual

3,78

1,99

5,77

Rep. Dominicana

Custo parcial

--

Sim

Residual

1,38

1,66

3,05

Retardatários

1,48

1,95

3,43

Repartição

4,79

1,69

6,48

Capitalização

3,28

3,07

6,35

Mistos

2,66

1,63

4,30

Paralelos

5,11

2,97

8,08

Média geral

4,33

2,17

6,50

Fontes: ISSA e normatização dos países em 2018; Cepal, para os dados sobre gastos sociais, em 2019, exceto para Venezuela e Haiti, que são de 2014.

 

A participação do Estado no cofinanciamento da proteção previdenciária contributiva é regra nos 20 sistemas, seja cobrindo eventuais déficits, seja destinando montantes previamente estabelecidos na normatização. Como destacado na literatura, a proteção previdenciária e da família não-contributivas são recorrentes na América Latina. A primeira, que inexiste apenas em Cuba, Honduras, Nicarágua e República Dominicana, é constituída por programas de pensões destinados a pessoas em idade avançada, inválidas ou com deficiência em situação de pobreza e ou extrema pobreza; a segunda segue padrão similar, inexistindo apenas na Venezuela, Guatemala, Haiti e Nicarágua. É constituída por programas destinados a famílias de baixa renda com crianças, pessoas com deficiência, idosos. Os serviços de saúde não-contributivos, por outro lado, apresentam variação maior: apenas o Brasil e Cuba contam com sistemas universais; Argentina e Chile contam com sistemas públicos, destinados a pessoas que não possuem seguro de saúde. Para o Panamá, Guatemala, Haiti e Honduras, não foram encontradas informações sobre qualquer oferta de saúde não-contributiva. Nos demais países, há oferta residual, isto é, destinada a segmentos de baixa renda, a públicos restritos (grávidas, na Venezuela; aposentados, no Equador) ou feita mediante subsídios a grupos específicos, também de baixa renda (El Salvador e Paraguai).

Em síntese, o gasto social destinado ao cofinanciamento da proteção previdenciária contributiva e financiamento das provisões não-contributivas varia bastante. Conforme a expectativa, ele é maior nos sistemas pioneiros (média de 10,14% do PIB dos países), caindo nos sistemas intermediários e retardatários (média de 6,47% e 3,43%, respectivamente). A diferença entre os tipos de regime financeiro é menor, com os paralelos apresentando a maior média, e os mistos, a menor. Em termos de divisão do gasto também há diferenças importantes: os sistemas pioneiros e intermediários destinam em torno de dois terços dos recursos para a Proteção Social, o que contribui para sua maior cobertura, e os retardatários privilegiam os gastos com Saúde. Entre os países, os que destinam menos de 5% do PIB à seguridade são os retardatários, exceto Paraguai, além de Panamá, México e Costa Rica; os que destinam mais de 10% são o Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e, com dados de 2014, a Venezuela.

A título de conclusão da análise da estrutura de financiamento da seguridade social, são apresentados, na Tabela 4, os percentuais totais de contribuição de trabalhadores, empregadores e a participação do Estado no financiamento da seguridade social (total de gastos com Proteção Social e Saúde como % do PIB). Na parte direita da tabela, é feita a pontuação das alíquotas totais e do gasto social, dividindo-se os percentuais por três, de forma a compor medidas equiparáveis para compilar o Índice de Solidariedade.

 

Tabela 4. Indicadores e pontuação da estrutura de financiamento da seguridade, por tipo de sistema, regime e país, 2019

País

Financiamento

Pontuação

Trabalhadores (%)

Empregadores (%)

Estado (% do PIB)

Trabalhadores

Empregadores

Estado (% do PIB

Total

Argentina

17

26,69

11,36

5,7

8,9

3,8

18,4

Brasil

11

28

14,90

3,7

9,3

5,0

18,0

Chile

18,89

3,93

11,30

6,3

1,3

3,8

11,4

Costa Rica

10,34

24,08

4,88

3,4

8,0

1,6

13,1

Cuba

5

14,5

7,61

1,7

4,8

2,5

9,0

Uruguai

21,25

12,5

10,78

7,1

4,2

3,6

14,8

Pioneiros

13,91

18,28

10,14

4,6

6,1

3,4

14,1

Bolívia

17,21

26

5,60

5,7

8,7

1,9

16,3

Colômbia

9,5

24,5

8,84

3,2

8,2

2,9

14,3

Equador

6,74

12,22

5,48

2,2

4,1

1,8

8,1

México

2,78

9,7

4,92

0,9

3,2

1,6

5,8

Panamá

9,75

13

3,09

3,3

4,3

1,0

8,6

Peru

13

10,39

5,38

4,3

3,5

1,8

9,6

Venezuela

4,5

13

11,94

1,5

4,3

4,0

9,8

Intermediários

9,07

15,54

6,47

3,0

5,2

2,2

10,4

El Salvador

10,25

15,25

4,69

3,4

5,1

1,6

10,1

Guatemala

4,83

10,67

2,67

1,6

3,6

0,9

6,1

Haiti

9,00

9,00

0,82

3,0

3,0

0,3

6,3

Honduras

6,50

11,98

2,73

2,2

4,0

0,9

7,1

Nicarágua

7,00

20

4,25

2,3

6,7

1,4

10,4

Paraguai

9

14,00

5,77

3,0

4,7

1,9

9,6

Rep. Dominicana

5,91

14,19

3,05

2,0

4,7

1,0

7,7

Retardatários

7,50

13,58

3,43

2,50

4,53

1,14

8,17

Repartição

8,23

16,45

7,20

2,74

5,48

2,40

10,63

Capitalização

11,68

11,12

6,35

3,89

3,71

2,12

9,72

Mistos

9,35

18,21

5,01

3,12

6,07

1,67

10,86

Paralelos

17,13

11,45

8,08

5,71

3,82

2,69

12,22

Média geral

9,97

15,68

6,50

3,32

5,23

2,17

10,72

Elaboração própria.

 

Conforme a expectativa, na dimensão Estrutura de Financiamento, os sistemas pioneiros são mais solidários, alcançando pontuação média de 14,1, superando, assim, a média da região (10,72). Os intermediários e retardatários ficam abaixo da média (10,4 e 8,17, respectivamente). As diferenças entre regimes financeiros são menores, ficando com a menor pontuação os de capitalização (9,72); a maior, com os regimes paralelos (12,22); e, com pontuações próximas da média da região, os de repartição e mistos. Os países que apresentam maiores potenciais de desmercantilização são Argentina, Brasil, Bolívia, Uruguai e Colômbia, e os que apresentam potenciais menores, Guatemala e Haiti.

Destaca-se, ainda, a pontuação média maior de empregadores, portanto, a favor dos trabalhadores, nos três tipos de sistemas, sendo que a menor diferença ocorre nos pioneiros (média 1,46 ponto), aumentando nos intermediários e retardatários (2,16 e 2,03, respectivamente) que ficam acima da média da região (1,9). Nesse aspecto, conforme a expectativa, a diferença entre regimes é mais significativa que entre sistemas: nos regimes de repartição, a diferença a favor dos trabalhadores é maior (2,74); nos regimes mistos, essa diferença aumenta, permanecendo a favor dos trabalhadores (2,95), situação que se inverte nos regimes que adotam exclusivamente a capitalização e nos paralelos, nos quais a diferença é negativa para os trabalhadores (-0,19 e -1,89, respectivamente).

 

Dimensão Incidência de Contribuição para Seguridade Social

 

A dimensão Incidência de Contribuição denota o nível de progressividade/regressividade das regras que definem a contribuição previdenciária de empregadores e trabalhadores. É mensurada aqui pela existência ou não de limiares mínimos e máximos de incidência de contribuição sobre a folha de salários, no caso de empregadores, e sobre a remuneração/ganhos, no caso de trabalhadores. No universo analisado, a estratégia mais comum é o estabelecimento de limiares mínimo e máximo tanto para trabalhadores quanto para empregadores, ou seja, abaixo e acima de determinado patamar de ganhos ou remuneração – geralmente, o salário mínimo legalmente definido e um múltiplo desse salário, respectivamente -, não há incidência de tributação para a seguridade social para empregadores e trabalhadores.

Três ponderações orientam a pontuação desse indicador: (i) a inexistência de limiares mínimos é considerada regressiva, dado que onera os trabalhadores com renda menor que o salário-mínimo e os respectivos empregadores, recebendo, portanto, pontuação negativa de dois décimos (-0,2) para trabalhador e para empregador; (ii) a inexistência de limiares máximos contribui para a progressividade do sistema, ao exigir contribuição sobre a renda auferida e ou a remuneração paga a partir de determinado patamar. Considerando que o efeito da contribuição sobre essas remunerações é maior que o decorrente das que incidem sobre rendas menores que o salário mínimo, a inexistência de limiar máximo recebe pontuação positiva maior (0,4) para trabalhador e para empregador. A descrição dos limiares existentes e a respectiva pontuação são apresentados na Tabela 5.

 

Tabela 5. Limiares para incidência de contribuição de trabalhadores e empregadores, por tipo de sistema, regime e país, 2019

País

Limites para trabalhadores e empregadores

Pontuação

Empregador

Trabalhador

Total

Mínimo

Máximo

Mínimo

Máximo

Argentina

Mínimo e máximo para ambos

0,2

-0,4

0,2

-0,4

-0,4

Brasil

Mínimo e máximo para ambos

0,2

-0,4

0,2

-0,4

-0,4

Chile

Mínimo e máximo para ambos

0,2

-0,4

0,2

-0,4

-0,4

Costa Rica

Mínimo para ambos

0,2

0,4

0,2

0,4

1,2

Cuba

Sem limites para ambos

-0,2

0,4

-0,2

0,4

0,4

Uruguai

Máximo para ambos

-0,2

-0,4

-0,2

-0,4

-1,2

Pioneiros

0,07

-0,13

0,07

-0,13

-0,13

Bolívia

Mínimo e máximo para ambos

0,2

-0,4

0,2

-0,4

-0,4

Colômbia

Mínimo e máximo para ambos

0,2

-0,4

0,2

-0,4

-0,4

Equador

Mínimo para ambos

0,2

0,4

0,2

0,4

1,2

México

Mínimo e máximo para ambos

0,2

-0,4

0,2

-0,4

-0,4

Panamá

Sem limites para ambos

-0,2

0,4

-0,2

0,4

0,4

Peru

Mínimo para ambos; máximo para empregador

0,2

0,4

0,2

-0,4

0,4

Venezuela

Mínimo e máximo para ambos

0,2

-0,4

0,2

-0,4

-0,4

Intermediários

0,14

-0,06

0,14

-0,17

0,06

El Salvador

Mínimo e máximo para ambos

0,2

-0,4

0,2

-0,4

-0,4

Guatemala

Mínimo para ambos

0,2

0,4

0,2

0,4

1,2

Haiti

Mínimo para ambos

0,2

0,4

0,2

0,4

1,2

Honduras

Mínimo para trabalhador, máximo para ambos

-0,2

-0,4

0,2

-0,4

-0,8

Nicarágua

Mínimo para ambos

0,2

0,4

0,2

0,4

1,2

Paraguai

Mínimo para ambos

0,2

0,4

0,2

0,4

1,2

Rep. Dominicana

Mínimo e máximo para ambos

0,2

-0,4

0,2

-0,4

-0,4

Retardatários

0,14

0,06

0,20

0,06

0,46

Repartição

0,16

0,13

0,16

0,13

0,58

Capitalização

0,20

-0,40

0,20

-0,40

-0,40

Mistos

0,07

-0,13

0,13

-0,13

-0,07

Paralelos

0,00

0,00

0,00

-0,40

-0,40

Média Geral

0,12

-0,04

0,14

-0,08

0,14

Elaboração própria.

 

Com base nos dados da Tabela 5, verifica-se que, em média, os sistemas retardatários são bem mais progressivos (0,46) que os intermediários (0,06), ao contrário dos pioneiros que pontuam negativamente (-0,13), ou seja, possuem, em média, sistema de tributação regressivo. Por referência aos regimes financeiros, o único progressivo é o de repartição, sendo regressivos todos os que adotam a capitalização, em especial, os que a adotam de forma exclusiva e paralela.

 

O Índice de Solidariedade da Seguridade Social

 

Investigados os indicadores relativos às três dimensões, resta somar a pontuação a elas atribuída para a composição do Índice de Solidariedade, o que é feito na Tabela 6.

 

Tabela 6. Índice de Solidariedade da Seguridade Social, por tipo de sistema, regime e país

País

Dimensão

Índice de Solidariedade

Organização da Proteção Previdenciária

Incidência Contribuição

Estrutura de financiamento da Seguridade

Argentina

-1,0

-0,4

18,4

17,0

Brasil

-2,0

-0,4

18,0

15,6

Chile

-4,0

-0,4

11,4

7,0

Costa Rica

-1,4

1,2

13,1

12,9

Cuba

-0,4

0,4

9,0

9,0

Uruguai

-2,0

-1,2

14,8

11,6

Pioneiros

-1,80

-0,13

14,11

12,18

Bolívia

-1,0

-0,4

16,3

14,9

Colômbia

-1,6

-0,4

14,3

12,3

Equador

-0,2

1,2

8,1

9,1

México

-2,4

-0,4

5,8

3,0

Panamá

-1,0

0,4

8,6

8,0

Peru

-1,8

0,4

9,6

8,2

Venezuela

-0,2

-0,4

9,8

9,2

Intermediários

-1,17

0,06

10,36

9,25

El Salvador

-1,0

-0,4

10,1

8,7

Guatemala

-1,2

1,2

6,1

6,1

Haiti

-1,0

1,2

6,3

6,5

Honduras

-1,6

-0,8

7,1

4,7

Nicarágua

-0,4

1,2

10,4

11,2

Paraguai

-2,2

1,2

9,6

8,6

Rep. Dominicana

-2,0

-0,4

7,7

5,3

Retardatários

-1,34

0,46

8,17

7,28

Repartição

-0,96

0,58

10,63

10,25

Capitalização

-2,33

-0,40

9,72

6,98

Mistos

-1,50

-0,07

10,86

9,29

Paralelos

-1,90

-0,40

12,22

9,92

Média geral

-1,42

0,14

10,72

9,44

Elaboração própria.

 

Os sistemas que obtêm pontuação mais alta no índice são os pioneiros (média de 12,18 pontos), ficando bem acima da média da região (9,44), em virtude, especialmente, do maior peso de sua estrutura de financiamento. São seguidos, pelos intermediários (9,25), e retardatários (7,28). Entre os regimes, também conforme a expectativa, os de repartição obtêm pontuação mais alta (10,25), ficando acima da média da região e superando aqueles que adotam a capitalização, seja de forma exclusiva (6,98), mista (9,29) e paralela (9,92). Mas há variações importantes no âmbito de sistemas e regimes, indicando que essas categorias não são determinantes da solidariedade inscrita nos sistemas analisados. Entre os pioneiros, destacam-se positivamente a Argentina e o Brasil e, negativamente, o Chile e Cuba. Entre os intermediários, destacam-se positivamente a Bolívia e a Colômbia e, entre os retardatários, a Nicarágua, El Salvador e Paraguai.

As diferenças entre a pontuação obtida pelos países no Índice de Solidariedade e na dimensão Estrutura de Financiamento devem-se, como antecipado, principalmente à organização de sua proteção previdenciária, que atua mitigando o potencial de desmercantilização da estrutura de financiamento, e à natureza regressiva ou progressiva da estrutura de tributação para seguridade. Somadas essas duas dimensões, os sistemas que mais mitigam o potencial desmercantilização, seja pela demasiada estratificação na organização da proteção previdenciária, seja pela concentração da tributação em rendas mais baixas, são os pioneiros (perdem, em média, 1,9 pontos), seguidos pelos intermediários e retardatários (-1,1 e -0,9, respectivamente). No que se refere aos regimes, os que mais perdem são os de capitalização e paralelos (-2,7 e -2,3 pontos, respectivamente). Entre os países, os que mais perdem são o Chile (-4,4), Uruguai (-3,2) e México (-2,8). Destacam-se, por tornarem o efeito dessas duas dimensões inexistente ou desprezível, os sistemas de Cuba e Guatemala (soma zero) e Costa Rica (-0,2), e, mais ainda, os sistemas que compensam eventuais efeitos negativos da organização da proteção previdenciária com progressividade no sistema de tributação, como ocorre nos sistemas do Equador (1), Nicarágua (0,8) e Haiti (0,2).

Assim, os níveis de solidariedade não são completamente explicados pelos tipos de sistema e de regime, o que torna pertinente a elaboração de um segundo recurso analítico, qual seja, o ordenamento dos sistemas de seguridade dos 20 países conforme a pontuação alcançada. Nessa direção, podem ser considerados com nível alto de solidariedade (de 10 a 17 pontos) os sistemas de seguridade da Argentina, Brasil, Bolívia, Costa Rica, Colômbia, Uruguai e Nicarágua; com nível médio (de 8 a 9 pontos), os sistemas da Venezuela, Equador, Cuba, El Salvador, Paraguai, Peru e Panamá; e com nível baixo (de 3 a 7 pontos), os sistemas do Chile, Haiti, Guatemala, República Dominicana, Honduras e México.

 

 

Conclusão

 

A análise dos traços relativos à magnitude e sentidos da solidariedade inscrita nos sistemas de seguridade social latino-americanos mostra a importância da organização da proteção previdenciária, que pode mitigar mais ou menos o potencial de desmercantilização derivado de sua estrutura de financiamento, e que esse potencial pode ser mitigado ou maximizado pelos limiares de tributação da folha salarial e dos ganhos. Em outras palavras, a análise mostra que a potencial capacidade financeira dos sistemas pode ser favorecida ou prejudicada pela natureza mais ou menos estratificada das provisões e pela regressividade ou progressividade do sistema de tributação da folha salarial e dos ganhos.

Conforme a expectativa gerada pelos achados de estudos comparativos da seguridade e dos regimes de bem-estar da região e as implicações do desenho dos regimes financeiros, os achados apontam maior capacidade de estratificação da organização da proteção previdenciária nos sistemas que adotam o regime de capitalização, relativamente aos que mantiveram o de repartição, e nos sistemas pioneiros, seguidos pelos retardatários e intermediários, contrariando, nesse sequenciamento, achados de Mesa-Lago e Filgueira. No que se refere ao potencial de desmercantilização, os achados corroboram a expectativa de que ele é maior nos sistemas pioneiros, nos quais a seguridade possui maior cobertura, como mostram os estudos comparativos indicados, caindo nos sistemas intermediários e retardatários, mas não apontam variação importante entre regimes financeiros. Não obstante, verifica-se que a previsão de contribuição de empregadores é maior que a de trabalhadores em todos os sistemas e regimes, exceto nos que incorporam a capitalização de forma exclusiva e paralela. Por fim, verificou-se que os sistemas com tributação mais progressiva são os retardatários, e a mais regressiva, os pioneiros. Ao receberem pontuações mais negativas nessa dimensão, somadas a pontuações também menores na dimensão de organização da proteção previdenciária, os países com sistemas pioneiros são os que mais prejudicam seu potencial de desmercantilização. Nos sistemas retardatários, verifica-se o inverso: a menor capacidade potencial de financiamento é compensada pela progressividade do sistema de tributação e maior uniformidade das provisões, o que explica a classificação de diversos deles como de solidariedade alta e média.

Merece menção ainda o fato de que todos os sistemas de seguridade, independentemente do regime financeiro em que se estrutura sua proteção previdenciária, mantêm financiamento tripartite, considerando o conjunto de suas provisões, embora nos regimes que adotam a capitalização de forma exclusiva e nos paralelos, a participação dos empregadores seja menor que a dos trabalhadores, dado que, em diversos países, empregadores ou o Estado não participam do financiamento dos benefícios por idade avançada. Deve ser destacado ainda que, em média, empregadores têm participação maior que trabalhadores no financiamento da seguridade, mas ambos pontuam mais que os governos.

Por fim, cabe lembrar, em primeiro lugar, que a realização maior ou menor do potencial de desmercantilização indicado para os 20 sistemas de seguridade depende do nível de formalização dos respectivos mercados de trabalho, dado que parte dos dados mobilizados nessa dimensão se refere a definições normativas (alíquotas de contribuição de trabalhadores e empregadores). Considerando que a informalidade caracteriza os mercados de trabalho latino-americanos, a realização desse potencial coloca-se também como um desafio para a efetivação dos níveis de solidariedade verificados para os diferentes países, regimes e sistemas.

 

 

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Notas


[i] Este artigo deriva da pesquisa Sistemas de Garantia de Renda Latino-americanos em Perspectiva Comparada, apoiada pela FAPEMIG e Pró-Reitoria de Pesquisa da UFMG. Agradeço esses apoios e as contribuições dos pareceristas anônimos da Revista Mundos Plurales.