Eutopia. Revista de Desarrollo Económico
Territorial N.° 25, junio 2024, pp. 33-54
ISSN 13905708/e-ISSN 26028239
DOI: 10.17141/eutopia.25.2024.6196
El territorio, los sujetos de acción y las paradojas impuestas al bioma cerrado
The territory, the subjects of action and the paradoxes imposed on the cerrado biome
Juzânia Oliveira da Silva Brandão. Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Geografia Doutoranda bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil(CAPES). juzaniabrandao@gmail.com . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2404-5153 .
Fernando Luiz Araújo Sobrinho. Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Humanas, Departamento de Geografia.
flasobrinho@unb.br . ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1815-8677 .
Recibido 26/02/2024. Aceptado 16/03/2024.
Publicado 25/06/2024
A través del análisis de los usos del territorio se identifican fuerzas activas y conflictivas en la disputa por los recursos naturales y el poder de los actores que forman parte de esta composición socioespacial. Con la intensificación del monocultivo en el bioma del Cerrado brasileño, también se ha incrementado el consumo exacerbado y la contaminación, que en ocasiones afecta directamente los recursos hídricos, sistemas complejos de extrema relevancia para todo el territorio nacional, afectando directamente a las poblaciones que allí residen y a las unidades de conservación. Por tanto, pretendemos exponer el antagonismo de intereses entre los usuarios del territorio que lo ven como un mero entorno físico, para la reproducción de commodities, y los sujetos territorializados, aquellos que tienen una relación orgánica con el lugar. Una investigación cualitativa que se realizará en el campo en 2022, presenta cómo se establecen las disputas, cómo afectan a las poblaciones locales y los impactos ambientales resultantes del monocultivo extensivo sobre la sociobiodiversidad regional. Se encontró que un grupo minoritario de sujetos, exógenos al lugar, relacionados con la agroindustria someten las diferentes formas de vida dependientes del territorio. La superposición sociocultural conduce a la desaparición de la sociobiodiversidad territorial.
Palabras clave: Territorialización; Bioma Cerrado; Ocupación colonial.
Through the reading of the uses of the territory, active and conflictive forces are identified in the dispute over natural resources and the power of the actors that are part of this socio-spatial composition. Exacerbated consumption and pollution were also activated by the intensification of monoculture in the Brazilian Cerrado biome, and that led to the worsening of water resources, extremely important and complex systems for all the national territory, affecting directly the populations and protected areas. Therefore, we intend to expose the antagonism of interests between the users of the territory, a mere physical environment, for the reproduction of commodities, and the territorialized individuals, who have an organic relationship with the place. A qualitative investigation, that was carried out in 2022, presents how disputes are established, how they affect local populations and the environmental impacts resulting from extensive monoculture on regional sociobiodiversity. It was found that a minority group of exogenous people related agroindustry subjugates the different forms of life dependent on the territory. Sociocultural overlapping leads to the disappearance of territorial sociobiodiversity.
Keywords: Territorialization; Cerrado Biome; Colonial occupation.
Não se trata de inventar de novo a roda, mas de dizer como a fazemos funcionar em nosso canto do mundo; reconhecê-lo será um enriquecimento para o mundo da roda e um passo a mais no conhecimento de nós mesmos. (...) pensá-la a partir do que somos (Santos 2002, 52).
A afirmação de Marx de que ‘o capital não tem pátria’ parece se realizar de um modo ainda mais perverso, posto que não sendo o capital simplesmente dinheiro, mas sim uma relação social, sua desterritorialização generalizada implica desterritorializar homens e mulheres que têm casas, famílias, parentes e, embora possam (e devam) se deslocar, não o fazem necessariamente com as mesmas motivações que movem a burguesia. O território torna-se uma questão central, vê-se (Porto Gonçalves 2012, 36-37).
O conceito de Território é abrangente, porém, se vinculado a extensão do termo usada, categoria geográfica miltoniana do Território Usado, carrega a designação de Territorialidade, sinônimo de pertencer àquilo que carrega consigo o sentimento de pertencimento, de exclusividade e de limite que ultrapassa a humanidade e prescinde da presença, existência do Estado. Logo, a territorialidade é compreendida como área de vivência e reprodução, onde o “território usado”, necessita de um esforço a analisar sistematicamente essa mesma constituição de determinado território. Aqui, faz-se necessário também a compreensão e determinação da “periodização”, uma vez que diferentes momentos históricos interseccionam o território em distintos períodos.
O território comporta tanto a unidade, quanto a diversidade, produzindo sistemas técnicos muito específicos que definem a repartição do trabalho interferindo, herança, no processo social ali presente.
(...) A divisão territorial do trabalho cria uma hierarquia entre os lugares e redefine, a cada momento, a capacidade de agir das pessoas, das firmas e das instituições. Nos dias atuais um novo conjunto de técnicas torna-se hegemônico e constitui a base material da vida da sociedade. É a ciência que, dominada por uma técnica marcadamente informacional, aparece como um complexo de variáveis que comanda o desenvolvimento do período atual. O meio técnico-científico-informacional é a expressão geográfica da globalização (Santos e Silveira 2001, 21).
O desafio aqui é expor o antagonismo de interesses entre os utilizadores do território para plantio e venda de commodities e os sujeitos territorializados, aqueles que tem uma relação orgânica com o lugar. A reflexão partirá do empírico, região do município de Chapada Gaúcha, em Minas Gerais, guiara-se nas teorias de Milton Santos, Edgar Morin e Achille Mbembe. A fim de responder as questões como: Quais são os atores das transformações deste território? Como eles atuam? Quais são suas ideologias de “crescimento econômico” ou “desenvolvimento”? Quais são as divergências no que tange ao metadesenvolvimento?
Em uma recente contextualização brasileira, verificou-se que médias e pequenas cidades tiveram uma readequação do quadro geral no território nacional, refere-se aqui ao deslocamento de recursos financeiros dos grandes centros urbanos para as médias e pequenas cidades, tendo como consequência direta, a reformulação socioambiental desses territórios, antes considerados “vazios”, no que tange a produção de recursos econômicos e habitacionais, porém, detentores de uma vasta biodiversidade.
Nestes espaços, antes complexos, percebe-se a tendência de tutelas territoriais por grupos exógenos, estes que ainda carregam em si toda uma reprodução de estrutura colonial predatória sem nenhum compromisso ético com a sociobiodiversidade local ali existentes. Esses fatos podem ser analisados através dos dados comprobatórios no Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) 2022, com resultados apresentados no ano posterior. Isso se deve, principalmente, ao interesse de atividades vinculadas com o capital externo, em especial à produção e reprodução de mercadorias, produtos básicos à comercialização global, tão ideologizado como commodities.
É importante compreender a complexidade que ações como essas interferem diretamente no uso do território, impacta toda uma dinâmica endógena pré-existente, ações desde a relação dos sujeitos como a composição do território, a reprodução cultural e simbólica, seja do grupo social previamente territorializados, seja dos novos grupos que ali se instalam, constituindo a sobreposição cultural entre coletivos sociais diversos.
A convivência simultânea cultural quase nunca é mantida, na maioria das vezes, um determinado grupo, que se considera mais potente ou mais organizado associativamente, age para descaracterizar ou até mesmo para destruir as expressões culturais anteriores. Bem, esse é o caso de Chapada Gaúcha em Minas Gerais. Fato explicitado pelo próprio nome do município, estabelecido em região de chapadões no coração do Bioma Cerrado, também conhecida pelos povos e grupos territorializados com os “Gerais”, o “Sertão”.
As regiões Norte e Noroeste mineiras alteraram-se bastante nessas últimas décadas. No que se refere a criação de municípios, as regiões sul e sudeste do estado foi, e continua a sendo povoada com maior intensidade, regiões fronteiriças com os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, motivado pela exploração de minerais no período colonial nacional. Já as regiões fronteiriças com Bahia, Distrito Federal e Goiás passam por um processo mais intenso de “colonialidade” após a transferência da capital federal para Brasília, estando dentro dos planos nacionais de desenvolvimento formulado a partir da década de 1960. E aqui, cabe ressaltar que esse momento territorial geográfico, tece novas relações e tensões no espaço geográfico estudado.
Para Milton Santos o Espaço Geográfico, categoria do objeto de conhecimento geográfico, caracteriza-se como:
(...) um conjunto de relações realizadas através de funções e de formas que se apresentam como testemunho de uma história escrita por processos do passado e do presente. Isto é, o espaço se define como conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que estão acontecendo diante dos nossos olhos e que se manifestam através de processos e funções. O espaço e, então, um verdadeiro campo de forças cuja aceleração é desigual (Santos 1986, 122).
Entender a cronologia é imprescindível para dotar de historicidade e constituição sociocultural dos grupos que habitam o lugar. Uma vez que as ocupações recentes do território se instalam e se apropriam como se essa região não tivesse sua carga histórico-cultural. Concebendo e recriando um discurso unilateral advindo das suas raízes secundárias, onde a historicidade inicia com a saída desses grupos em direção a territórios antes “vazios”, que necessitam ter seu registro contado por pequenos grupos exógenos ao lugar, que por mera conformidade receberam apoio financeiro e político do Estado, por meio de interesses de restritos grupos de políticos, que ignoram os sujeitos que habitavam anteriormente esse território. Logo, a imagem que se segue (Figura 1) demonstra a evolução da divisão municipal, figuras comparativas da divisão territorial no estado mineiro nos anos de 1952 e 2023.
Ao analisar as imagens contrastadas pode-se identificar o acréscimo exponencial de municípios na mesorregião Norte e Noroeste mineiro. Se a Zona da Mata, Sul e Sudoeste mineiro, mesorregiões que fazem fronteira com os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, tiveram sua intensificação em critérios de povoamento e, em consequência, na divisão política do territorial no ciclo da mineração do Brasil, a partir da segunda metade do século XVIII, ainda na condição de colônia portuguesa, processo que inicia o movimento do litoral rumo ao interior do país, a buscar novas formas de produção e extrativismo. Podemos dizer que o movimento que inicia o adensamento populacional das mesorregiões Norte e Noroeste mineiras, tendo como principal mola propulsora, foi a transferência da capital nacional, do Rio de Janeiro para Brasília promovida pelo plano desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck, tendo como bases anteriores o projeto do governo de Getúlio Vargas, período da ditadura militar, intitulado a Marcha para o Oeste, a fim de se apropriar e explorar o território nacional que se configurava, na perspectiva política-institucional, como “vazios” econômicos e demográficos.
Atualmente, Minas Gerais é o estado com o maior número de municípios do país, com um total de 853, seguido por São Paulo com 645 municípios, sendo o quarto estado com maior dimensão territorial, atrás do Amazonas, Pará e Mato Grosso (IBGE Cidades, 2023).
Porém, o caracterizado por “vazio” demográfico constituíam territórios habitados por indígenas, camponeses e quilombolas[i], entendidos aqui como povos cerratenses, grupos territorializados que carrega em contexto histórico uma série de ações de invisibilidade protagonizadas pelo Estado e por desenvolvimentistas que, por séculos, protagonizaram o apagamento dos povos originários e populações tradicionais, em uma busca quase incessante e irracional por uma sociedade brasileira que refletisse o estereótipo europeu.
Figura 1. Evolução da divisão dos municípios mineiros - 1952 e 2023
Fonte: 1.1. Adaptado a partir de IBGE Mapas e IBGE Cidades (2023); 1.2. IBGE, Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (Volume 24, 19); 1.3. Adaptado a partir de SISEMA/MG - IDE (2024).
Observação: 1.1. Minas Gerais (Brasil) em contexto na América do Sul; 1.2. Divisão dos municípios mineiros em 1952; 1.3. Divisão dos municípios em 2023.
A composição e origem do conceito que nomeia o bioma em questão, Cerrado, dá-se em referência direta ao vasto território, ainda desconhecido ou inexplorado, do interior do país, por vezes também sinônimo de Sertão[ii]. Assim, faz necessário expor que a expressão “cerrado” surge como um discurso desenvolvimentista, econômico e político-governamental para inserir uma nova estrutura produtiva no Brasil rural, aqui, o Cerrado seria uma espécie de transitoriedade, realidade do presente com aspectos de “atrasado” apto a, no futuro, ser transformado e possuir viabilidade econômica. E, aos que desejam “começar do zero, nada mais fácil do que assumir o discurso mais asséptico (politicamente falando), mais diretivo, preciso, científico e verificável (...): cerrado – terra sem homem e sem história – aliado a produtividade econômica” (Vicentini 2016, 25).
Segundo a Rede Cerrado (2024), há a constatação de mais de 80 etnias indígenas abrigadas no bioma Cerrado, acrescido de outros povos como grupos quilombolas, trabalhadores extrativistas, “geraizeiros, vazanteiros, quebradeiras de coco, ribeirinhos, pescadores artesanais, barranqueiros, fundo e fecho de pasto, sertanejos, ciganos, entre tantos outros”. Todos esses grupos sociais que vivem “no” e “do” Cerrado, constituído memória e expressando seus saberes através dos ritos e simbolismos culturais.
No decorrer do século passado, em especial na segunda metade do século XX, o território brasileiro, em especial nos biomas Cerrado e Amazônico, foi sendo “colonizado” por sujeitos que operam o sistema de monoculturas no país e subsidiadas pelo Estado no período da ditadura militar. Essa colonização é facilmente identificada por meio de uma breve pesquisa sobre as cidades do agronegócio no território nacional, temos com resposta muitos nomes de municípios, a exemplo: Sinop (Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná) no estado do Mato Grosso, Chapadão do Sul em Mato Grosso do Sul, Luís Eduardo Magalhães no extremo oeste da Bahia. Não tão expressivo no cenário do agronegócio, tem-se também o município aqui pesquisado, Chapada Gaúcha, anteriormente identificada por Vila dos Gaúchos, nome de origem em homenagem aos colonizadores sulistas, relegando a diversidade cultural ali presente, há séculos, a sobra de um pequeno grupo minoritário.
O espaço geográfico pesquisado é, transversalmente e constantemente, influenciado por inúmeros agentes da produção do espaço (Figura 2), tanto urbano quanto rural, numa perspectiva em que, comumente, o urbano se sobrepõe e reconfigura o rural, tais como: a. Uso do território: presença de áreas de proteção ambiental, plantios de commodities (Figura 2 – 2.1), área urbana, território quilombola (Figura 2 – 2.2), território indígena, assentamentos de realocação de agricultores familiares e/ou extrativistas, entre outros; e b. Sobreposições culturais: (r)existência de povos originários, povos tradicionais do sertão mineiro com seus rituais e procissões em contato com as recém-chegadas expressões culturais sulistas que impõem sua presença como marco de conquista, tal qual eram feitos no período colonial, quando se construíam templos simbólicos culturais nos territórios conquistados.
A região sofreu e sofre inúmeras transformações nas últimas décadas devido à forte ação antrópica, em especial, pelo extrativismo de vegetais exógenos ao bioma Cerrado, cuja finalidade é obtenção de recursos financeiros a partir da venda de matéria-prima para exportação, commodities.
Essa modalidade de “pasteurização” do solo (Figura 2 - 2.1) ao plantio de grãos e posterior colheita não beneficia a vegetação nativa cerratense, pelo contrário, é uma coleta “de” e “para” a reprodução de capital estrangeiro em detrimento dos recursos hídricos, minerais e de todo o sistema químico e biológico existente. Recursos naturais que são, forçosamente, utilizados para produzir e reproduzir milhares de hectares de grãos, expondo o solo, a fauna, a flora, os sistemas hídricos e os grupos sociais territorializados ao convívio com as intempéries decorrentes da aposta de poucos agentes transformadores destes espaços que não demonstram nenhuma ética com o futuro desses agentes passivos sociais e ambientais (Figura 2 - 2.3), a exemplo, o Rio Pardo que por estar inserido em território quilombola, ainda preserva muito de suas características naturais.
Em áreas de fronteira entre o sistema de plantio de monocultivo, os territórios quilombolas e as fontes de recurso hídrico da região são facilmente afetados pelo impacto desse sistema produtivo, contrastantes na paisagem da região, causando forte pressão de ações antrópicas nas unidades de conservação (UCs) ambiental que o município acolhe, entre elas: o Corredor Ecológico que abriga a comunidade Buraquinhos e interliga outras duas UCs, o Parque Nacional Grande Sertão Veredas – Parna GSV - e o Parque Estadual Serra das Araras.
Figura 2. Paisagens presentes em Chapada Gaúcha – MG
Fonte: Acervo pessoal (2022).
Esta região carrega ainda, em seu cerne, toda a cultura e tradições cerratenses dos Gerais mineiros - áreas extensas no planalto central brasileiro, inseridas no bioma Cerrado, muitas vezes, terras de uso comum, sem designação específica de propriedade. Abrigo de populações tradicionais múltiplas, detentoras de conhecimentos relacionados ao território (ciclos climáticos, plantas, animais, rotas), acrescido da religiosidade e, mais recentemente, o uso da literatura de Guimarães Rosa, inserida como forma de retomada da cultura desses povos do lugar e resistência.
Problemas surgem quando há uma imposição de sobreposições desenvolvimentistas dos grandes centros urbanos sobre os não-grandes-centros-urbanos. Mentorias e mandatos daqueles sobre estes, em especial, as centralidades dos conhecidos como “países desenvolvidos”, “países do norte global”, reproduzindo seu pseudodesenvolvimento a esses lugares distintos e com potenciais outros divergentes de todo um Discurso Competente[iii] produzido por minorias centrais urbanas que, nos dias atuais, pode-se até dizer, grupos mistos de capital estrangeiro, ou, em sua forma homogênea, hegemonias.
Sem fisionomia e sem nenhum comprometimento moral ou ético com os mais inúmeros e ímpares espaços geográficos constituídos e existentes, dentre estes, os que mais sofrem pressão e causa repercussão são os que intencionam ou realizam algum tipo de resistência a esses sistemas predatórios de imposição e intencionalidades, muitas vezes, alheias ao desenvolvimento da integralidade desse espaço geográfico constituído, complexo e interrelacional.
Morin e Kern (1993) irão refletir e expressar a saída do que eles consideram “desenvolvimento-problema” ao “desenvolvimento humano” a partir do desenvolvimento de habilidades psíquicas, espirituais, étnicas, culturais e sociais. Diferente da noção desenvolvimentista, embrionária e mutilada, reduzida ao viés economicista e progressista. Essa mesma noção que se origina na dominação, escravização e exploração, em outras palavras, no início do processo da globalização.
Esses autores adotam o metadesenvolvimento, tendo o desenvolvimento como finalidade para “Viver verdadeiramente. Viver melhor”, (Morin e Kern 1993, 88), a partir de uma ética do desenvolvimento, onde a economia precisa ser controlada por normas antropo-éticas. Situação atual em que as digressões e catástrofes civilizatórias modernas se sustentam na individualização e consumo, carecendo, urgentemente, de reforma no pensar e nas ações vitais.
Necessitando-se considerar a insuficiência, simplificação, da concepção atual de desenvolvimento, sendo imperativo
(...) dialectizá-la com a ideia de envolvimento e de involução, que nos remete para a origem ou antemundo, imersão nas profundezas do ser, regresso ao antigo, reinteração, esquecimento de si, introspecção (...), imersão na natureza, retorno aos mitos, procura sem fim, paz sem palavras (Morin e Kern 1993, 89).
Na contramão do estabelecido como metadesenvolvimento, a economia acaba por exercer forte pressão no território, é o que se assimilou como Capital. Esse, rege, manda e desmanda nas relações políticas, tornando-se quase que um denso deformador moral, em especial em países como o Brasil, onde há uma alta concentração de capital. Porém, apesar de sofrer todas as ações de produção e reprodução de grãos para exportação (Figura 3), territórios como o do município da Chapada Gaúcha, sua população, pouco recebe de retorno referente a comercialização desses produtos.
Figura 3. Chapada Gaúcha - MG: contorno urbano
Fonte: Adaptado a partir de Google Earth Pro (2023).
Com uma população de 12.355 habitantes, segundo IBGE Cidades (2022), e com PIB per capita de R$ 28.354,63, sendo que somente 9,38% dessa população relata condição de emprego formal, fica evidente que o capital ali produzido escoa para empresas ligadas ao agronegócio com sede em grandes centros urbanos comerciais, restando ali galpões, silos para estocagem da produção. Logo, em uma breve estadia no único hotel da cidade, confirmar-se que os sujeitos não são, nem estão nesse município, nem ao menos compreendem as ações causadas por suas fontes de enriquecimento econômico as quais se fixam e acometem o território. A exemplo, cita-se a suspensão de partículas no ar durante os meses de agosto a setembro (Fotografia 1), período em que a produção fica suspensa devido à ausência das chuvas e o solo encontra-se inteiramente descoberto, hectares e hectares de terra sem nenhuma cobertura vegetal, ampliando a sensação térmica e impactando diretamente na qualidade do ar da região.
Fotografia 1: Suspensão de partículas no ar e a “miragem” provocada
Fonte: Acervo pessoal (2022).
Aqui, não há como separar interesses políticos, econômicos, institucionais, sociais, ambientais, seja qual for o conceito que se insira, os grupos detentores do capital e reprodutores da monocultura espalhada pelo território nacional se inserem pelas vias da ganância intensificada pela inexpressiva ação ou consciência cidadã.
O capitalista que produz o mais-valor, isto é, que suga trabalho não pago diretamente dos trabalhadores e o fixa em mercadorias, é, decerto, o primeiro apropriador, porém de modo algum o último proprietário desse mais-valor. Ele tem ainda de dividi-lo com capitalistas que desempenham outras funções na totalidade da produção social, com o proprietário fundiário etc. O mais-valor se divide, assim, em diversas partes. Seus fragmentos cabem a diferentes categorias de pessoas e recebem formas distintas, independentes entre si, como o lucro, o juro, o ganho comercial a renda fundiária etc. (...) Por outro lado, o fracionamento do mais-valor e o movimento mediador da circulação obscurecem a forma básica simples do processo de acumulação. Sua análise pura, por conseguinte, requer que abstraiamos provisoriamente de todos os fenômenos que ocultam o jogo interno de seu mecanismo (Marx 2011, 777-779).
Logo, restam as cicatrizes que precisam ser levadas em consideração referentes a (re)produção capitalista no uso do território, nos grupos sociais e os recursos ambientais que ainda (re)existem.
O Brasil, quase que como seguindo um padrão que se repete em vários países da América Latina, carrega em seu histórico distintas ênfases de formas de desenvolvimento. Até aí tudo bem, entende-se que o desenvolvimento precisa surgir, brotar das características e necessidades intrínsecas e singulares do lugar, situação também aplicável na região aqui pesquisada. Porém, percebe-se a necessidade de uma profunda reflexão associada a mudança de ações frente as transformações impostas ao território nacional, a fim de que não se repita as mazelas da colonização, fato neste subtópico abordado, traço marcante e ainda doloroso na formação cultural dos países que passaram pelo processo colonial, seja como colonizador, seja como colonizado.
Neste contexto, torna-se imperativo trazer a interpretação de Joseph-Achille Mbembe (2017) sobre os quatro traços característicos do tempo que nos atravessa. Segundo ele, nosso tempo expressa-se devido:
a) O estreitamento do mundo e o repovoamento da Terra, desenraizamento geográfico e cultural, territórios antes habitados unicamente por povos autóctones sofrendo uma drástica transposição espaço-temporal devido a colonização e tráfico de escravos.
b) A redefinição do humano no quadro de uma ecologia geral e de uma geografia agora alargada, esférica e irreversivelmente planetária.
c) A introdução generalizada de ferramentas e de máquinas de cálculos ou computacionais em todas as facetas da vida social.
d) A articulação entre o poder do capital e a capacidade de alterar voluntariamente a espécie humana.
A paz e fartura usurpadas pelas civilizações europeias nos processos coloniais fez-se as custas da violência a distância em terras devastadas – América, África, Ásia - instituindo um regime de desigualdades em escalas planetárias, motor central da implementação de poder através da estratificação das sociedades e seus territórios através da hierarquização, instituindo-se os europeus no ápice dessa hierarquia, relegando ao todo não-europeu a inferioridade e, em casos mais extremos, seu completo apagamento como seres humanos.
Logo, podemos inserir a questão: Como podemos contextualizar o processo da globalização nessas regiões, em especial na América Latina?
Para respondê-la, parte-se de algumas leituras, tal qual em Quijano (1992) e Mingolo (2017), a compreender que todo o processo modernidade-colonialidade-globalização (Figura 4), que vivemos de forma rotineira nos dias atuais, tem sua raiz encravada na colonização da América, África e Ásia.
Esses territórios, suas sociedades e culturas, foram brutalmente dominados, violentados por mais de cinco séculos. Como reflexo, nas sociedades contemporâneas, percebe-se constantes conflitos de poder entre os novos atores de predomínio que se revezam por via de forças que se estruturam através da dominação política formal, articulam-se principalmente em países do exterior. Essa dominação, explicitada por Quijano como colonialismo, embrenha-se nos corpos das mais distintas sociedades originárias de forma direta, política, social e cultural.
Sua estrutura gera discriminações sociais que se desmembraram em segregações racionais, éticas, antropológicas ou nacionais, conduzindo a uma atmosfera de ódio e rancor entre criações de inimizades tal qual apresentadas por Mbembe (2017). Logo, esse processo físico de colonização iniciado por determinados grupos europeus se converteu na colonização também de imaginários, crenças e ideias, símbolos e do conhecimento, que por vias de reprodução do colonizador, cunhada na cientificidade e objetividade, ausência de elos afetivos, concretizaram-se na atual dominação colonial global.
Figura 4. Relação modernidade-colonialidade-globalização
Fonte: Elaborado a partir de Mingolo (2017).
Para Mingolo (2014), a globalização que se inicia com as mazelas originadas na colonialidade do poder é central para o discurso que relaciona modernidade/colonialidade, expondo a “ferida colonial” nas populações originárias colonizadas, vítimas por seu caráter diverso, múltiplo e diferenciado. Uma narrativa de sobreposições culturais que visam estabelecer segregação, estagnação ideológica além de ser redutora, homogeneizante, ou, em seu termo mais comum, colonial. Como resposta à globalização e ao pensamento linear global esse autor cunha o termo Matriz Colonial do Poder, baseado nas experiências da América do Sul e Caribe com a colonialidade. Aqui, a modernidade se estabelece como uma narrativa originada na Europa, narrativa essa que substância a ideológica civilização ocidental, celebrando conquistas e escondendo, simultaneamente, a obscuridade da colonialidade.
É Mingolo que alerta sobre a modernidade, sendo que a mesma precisa ser assumida nas narrativas contemporâneas por seus dois lados, tanto pelas glórias quanto por seus crimes, uma vez que ela se sustenta de forma dual: no âmbito econômico, a colônia e o país colonizador têm situações distintas; e no epistemológico, a ciência enquanto conhecimento, arte e significado. Institui-se aqui, nesse emaranhado sociobiodiverso um novo sistema na tecitura social planetária, o que se ideologizou por capitalismo.
Com base neste mesmo autor, temos aqui o nascimento da retórica da modernidade. Suas práticas econômicas, dispensam vidas humanas pela escravidão, transformadas em mercadorias. O conhecimento é utilizado para justificar o racismo e a inferioridade de todas as demais vidas humanas. Aqui, aplica-se uma dupla colonização, do tempo e do espaço. A primeira, através da invenção renascentista da Idade Média, já a segunda, criada pela colonização simultânea a conquista, domínio, do Novo Mundo. Como resultado direto temos o que se projetou como o mundo atual policêntrico e também interconectado pelo capitalismo. A atual emergência planetária se estrutura agora no controle e na administração autoritária, política, econômica, subjetiva e em normas, que também está presente na relação de gênero e sexo.
Para Mingolo, o caminho inverso a colonialidade é a fundamentação de pensamento decolonial, ou seja, a desobediência epistêmica da matriz colonial. E aqui, no tocante a construção epistemológica, a matriz colonial se constrói e é operada por nós, “histórico-estrutural heterogêneo”, que simultaneamente “divide e une a modernidade/colonialidade, as leis imperiais/regras coloniais e o centro/as periferias” (Mingolo 2017, 10). Neste ponto, a autora Connell (2013) enfatiza que na constituição da teorização disseminada globalmente, o Sul Global, também vista como a periferia acadêmica, atua como uma espécie de campo onde se buscam dados e informações que, posteriormente, são analisados e teorizados pelo Norte Global, aqueles que legitimam a ciência contemporânea, o centro, a metrópole.
Esta autora também enfatiza a atuação dos centros universitários mundiais que atuam como uma espécie de corporações que exigem de seu corpo científico a produção constante e incessante de conteúdos a fim de embasar valores corporativos que requerem eficiência, constituindo um tecido homogêneo da teia de conhecimento global.
Assim, para Connell, uma forma de desviar desse sistema de conhecimento global, homogêneo, emoldurado pelas instituições europeias e estadunidenses, cultura acadêmica globalizada, assumindo sistemas de classificação, e seu caminho inverso, produzir conhecimento baseado na existência, na endogenia, na heterogeneidade de cada lugar, imaginar e constituir novos projetos educacionais sustentados nas culturas e saberes das sociedades e suas diversidades.
Desta forma, operacionalizando soluções a longo prazo, formando intelectuais locais com senso de responsabilidade para com a sociedade e que atuam por essa sociedade, assentar as problemáticas e reconhecer suas metodologias próprias sobre o sistema de conhecimento onde o próprio problema se originou. Situar neste grupo social, seu território e sua cultura, as especificidades para desenvolver estudos e teorias que construam estruturas e mecanismos intelectuais favoráveis a continuidade cultural e histórica.
Connell também conduz a um repensar no papel das masculinidades na realidade atual de um mundo centrado em um pré-conceito formatado quanto à representação masculina e suas consequências sociais, sendo a duas as chaves para o desenvolvimento de estudos sobre esse tema, o trabalho empírico e as análises conceituais para além do paradigma do papel sexual e do poder, múltiplo e hegemônico (Figura 5).
Aqui nomearei essa ideologia hegemônica da masculinidade por “duplo masculino”, como uma espécie de fotografia de um ideário construído e esculpido a partir da colonização de masculino, utilizado e propagado como se forjado para todas as demais masculinidades, uma homogeneização do masculino, que tenta refletir a realidade, mas que não passa de um duplo, simulacro onde o masculino é caracterizado principalmente pela força e a hegemonia de poder.
Figura 5. Colonialidade do masculino
Fonte: Elaborado a partir de Connell (2014).
A perspectiva eurocentrada foi seguida por um modelo de ciência que isola o sujeito e o objeto, se segrega e hierarquiza qualquer diferenciação ou diversidade que não de origem europeia. Ao fazê-lo, fecha-se ao diálogo ou ao simples movimento de interpretação e entendimento de outros conhecimentos que não os seus próprios. O preço a se pagar pelas populações originárias é o genocídio de tribos inteiras no caso da América Latina e de julgar pessoas como mercadorias no caso das tribos africanas.
Necessita-se, urgentemente, descolonizar o pensamento e as práticas alinhadas a velha ciência europeia de totalidade parcializada em conformidade com a perspectiva eurocentrada. O conhecimento encontra-se na diversidade e na pluralidade de experiências humanas. A heterogeneidade cultural mundial, com suas características ímpares resguardam enorme teor de conhecimento ainda não compreendidas pela soberba da velha ciência eurocentrada. Não se questiona aqui a importância do constructo europeu a ciência mundial, apenas abre-se a outras formas de conhecimento e reconhecimento da diversidade e pluralidade cultural das outras formas de fonte de se fazer ciência.
Em Mbembe (2017), a democracia, antes estruturada na figura do político, encontra-se ameaçada devido a imbricação entre: capital, tecnologias digitais, natureza e guerra, e novas constelações de poder que ela possibilita. Aqui a democracia visa a garantia da permanência política e ampla abertura a vida do estado a adquirir caráter público, estando assim, em um contra caminho ao modelo liberal ou neoliberal vigente.
O apresentado por Mbembe também se evidencia em Manso, neste, a “violência dos corpos foi substituída pela força das formas” (Manso 2017, 32), onde os grupos caracterizados por milicianos, reguladores de comportamento, governadores das condutas sociais, está presente na ideologia produzida por estes e seus pares. Ações que intencionam a prevenção da desordem e da violência através de rígidos rituais, convergindo em formas de “democracias outras” modernas que toleram, até certo grau, uma explícita violência política, em muitos casos, até ilegal. Passando a integrar culturas de brutalidade impostas por instituições privadas agindo sob a tutela ou a omissão do Estado, linha estreita entre este e grupos militares ou paramilitares.
A reprodução, ainda nos dias atuais tal qual acontece na região estudada, de processos ou intervenções coloniais, impostas a partir de perspectivas exógenas, esfacela e aniquila toda e qualquer expressão de culturas locais ali territorializadas, endêmicas ao lugar, conhecedoras de fatos tão típicos que só acontecem neste contexto. Pior ainda é se utilizar desta forma cruel de imposição e reprodução no território e naturalizar a colonização como uma forma autêntica e potente de poder, sendo somente mais uma cicatriz no próprio corpo antes colonizado, anseio de ser colonizador.
Reconhecer as tragédias e buscar soluções é também papel dos geógrafos que estudam o território, neste caso, um território que carrega em sua historicidade as lembranças das tomadas de decisão dos governantes do Brasil colônia e república que se utilizaram, de forma intensiva, do tráfico humano, pessoas trazidas do continente africano.
O município de Chapada Gaúcha (Mapa 1) possui áreas de proteção ambiental de uso restrito – Parque Nacional Grande Sertão Veredas - e também de uso múltiplo – Parque Estadual Serra das Araras e a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Veredas do Acari – além de zonas onde abrigam populações tradicionais, entre as quais, destaque a comunidade quilombola, Quilombo Buraquinhos (Fotografia 2), detentora de saberes sobre o ecossistema e de cultura afrobrasileira.
É importante ressaltar que toda essa região se localiza no bioma Cerrado, local de origem de importantes bacias hidrográficas brasileiras, refúgio de uma complexa Sociobiodiversidade. É o ecossistema nacional que mais transformações sofreu, e sofre, nas últimas décadas. Seu desmatamento desenfreado impacta toda a biocenose que, acionando ações de causa-efeito em cadeia, refletem diretamente nas principais nascentes que abastecem oito macrorregiões hidrográficas brasileiras e percorrem grande parte do território nacional, sendo elas: Amazônica, Tocantins/Araguaia, Paraguai, Parnaíba, Atlântico Nordeste Ocidental, São Francisco, Atlântico Leste e Paraná.
A macrorregião hidrográfica estudada nesta pesquisa é uma pequena parte inserida na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, mais precisamente, as sub-bacias do Rio Urucuia e Rio Cariranha na região fisiográfica do Alto São Francisco.
Mapa 1. Localização das áreas pesquisadas
Fonte: Elaboração própria (2024).
Fotografia 2. Técnicas e produções tradicionais da Comunidade Quilombola Buraquinhos
Fonte: Acervo pessoal (2022).
Aqui, esses sujeitos do territorializados, tal qual, ao citar Raffestin (1986; 1988), Haesbaert (1997) menciona que aquele autor muito se dedicou ao conceito de território, denominou o processo de T-D-R: Territorialização – Desterritorialização – Reterritorialização. Neste autor, a territorialização humana, seus laços constituídos na relação com o território de vivência:
(...) pode ser definida como o conjunto de relações que desenvolve uma coletividade – e, portanto, um indivíduo que a ela pertence – com a exterioridade e/ou a alteridade por meio de mediadores ou instrumentos (Raffestin, 1986, 183; 1988, 365, apud Haesbaert 1997, 32).
Ainda segundo Haesbaert (1997), é atribuído ao que grupos migratórios sulistas denominam por “modernização” o que gera confronto direto com as tradições das populações locais previamente instaladas, gerando interferência direta no processo de reformulação de novos territórios: novas formas de territorialização sulista frente à desterritorialização dominante, mas não exclusiva, entre os sujeitos ali situados previamente.
Em síntese, podemos afirmar que a desterritorialização contemporânea, fruto sobretudo de uma longa história das relações capitalistas, é produto/produtora das inovações tecnológicas impostas pelos capitalistas e pela sociedade de consumo, que podem gerar uma crescente mobilidade (de pessoas, mercadorias e informações), do relativo desmonte do Estado-nação e do domínio que exercia sobre sua territorialidade (enfraquecendo as formas tradicionais de cidadania e de controle político sobre as transformações territoriais) e da crise de valores que gera uma crise de identidades, incluindo as identidades com a natureza (cada vez mais devastada e “enclausurada” em reservas de acesso controlado) e com o território em sentido mais amplo (Haesbaert 1997, 112).
Ainda na constituição conceitual deste autor, tecendo novos arranjos políticos e uma atmosfera de atritos culturais somados a competitividade e desigualdade socioeconômica. Capaz de promover territórios virtualmente abertos e potencialmente “multiculturais, porém, também é passível de destruir fronteiras de controle e referência, diluir relações interpessoais diretas, mediadas por dispositivos de tecnologia, a promover desemprego estrutural e o novo nomadismo” (Haesbaert 1997, 112) de empregos temporários, o que afeta profundamente a desigualdade entre os diferentes estratos sociais.
Tal qual Santos (2002) sintetiza que, com muita frequência, as ideias de lugar e localização, antes gêmeas, aparecem dissociadas:
Uma dada fração do território permanece no mesmo ponto de encontro das coordenadas geodésicas, marcada pelas mesmas características geográficas e frequentemente guardando o mesmo nome herdado. Isso é o seu lugar físico. Sua localização, seu lugar econômico e social (e político), está mudando, segundo uma lei que é a da nação como um todo. No caso do brasileiro, tal mudança, rude e perversa, frequentemente decorre de fatores distantes e estranhos, sem possibilidade de contraponto local. A própria lógica interna de lugar, que deveria guar e apoias as tarefas dos governos locais, é com frequência deslocada, tornada alheia, no sentido de estranha. Mas a organização político-territorial ainda é pensada como se houvesse unidade entre lugar e localização e como se os meios materiais e jurídicos para enfrentar a nova síntese histórica pudessem ser os mesmos (Santos 2002, 22-23).
A categoria de lugar, na maioria dos territórios, configura-se meros receptáculos de rupturas culturais, conduzindo os sujeitos do lugar, antes territorializados, expressões da errância. Enquanto no território os Estados se organizam e, a partir de simulacros que combinam recortes temporais específicos, ressaltam a estrutura dos grupos que estão no poder, utilizando-se desses simulacros como uma espécie de “coleira” da existência coletiva grupo social ali instalado momentaneamente.
A permanência no território, possibilita o sujeito territorializado o uso e usufruto dos eventos e lugares de seu passado, mantendo ativa sua identidade e, consequentemente, cultura, territorializando o sujeito em seu tempo-espaço.
O Cerrado tem um enorme patrimônio acumulado de conhecimentos, de dinâmicas ecológicas e de especificidades e complementariedades entre as unidades da paisagem. Com base nesse acervo, nos últimos anos algumas iniciativas em torno do agroextrativismo vêm se estruturando. Algumas extraem mais de 100 produtos, a partir de resinas, frutos etc., beneficiando milhares de famílias. Essas iniciativas dão um testemunho dessa convivência entre agricultura e extrativismo, do manejo integrado das paisagens de Cerrado por seus povos (Porto Gonçalves 2014, 8).
Reitera-se então a importância das questões locais serem respondidas e desenvolvidas pelas populações que neste âmbito local vivem. Sabe-se que para a implementação do Parna GSV desterritorializou-se povos tradicionais cerratenses para reterritorializá-los em assentamento no município vizinho de Formoso, Minas Gerais, relegando esses sujeitos, antes territorializados, com saberes e práticas intergeracionais um processo de reterritorialização em uma ambiente completamente distinto sob normas e diretrizes diferentes, além da própria composição de dimensão territorial singular, criando-se um deslocamento espaço-temporal em suas memórias, afetando diretamente sua construção e expressão cultural. Assim, segue-se aqui o padrão dissociativo sujeito-natureza, como se o primeiro fosse, unicamente, destrutivo a segunda.
No que tange os recursos naturais de Chapada Gaúcha, existem três unidades de conservação em seu território, sendo elas:
1. Parque Nacional Grande Sertão Veredas – apenas uma pequena parcela de sua área;
2. Parque Estadual Serra das Arara – sua área total; e
3. Reserva de Desenvolvimento Sustentável Veredas do Acari – quase que sua área total.
Já a situação do Quilombo Buraquinhos é completamente oposta, a natureza ali situada se mantém devido a presença dos sujeitos desta comunidade, de seu direito a um território que o possibilite expressar e manter sua cultura, ambas sendo parte integrante para continuidade, resistência e sobrevivência da outra, uma relação simbiótica sujeito-natureza.
Assim, entende-se a necessidade pulsante em interrelacionar os aspectos dos elementos soltos no caos do território, sua natureza, são repletos de signos que, aos olhos atentos do observador consciente, tem o potencial de realizar a leitura da composição e manutenção da paisagem ali estabelecida. Não fixa, em constante mutação, uma vez que as forças e as ações que atuam sobre esse território, são detritos de uma suposta ordem de interesse daqueles que, continuamente, esforçam-se para manter essa composição.
Conclusões
Agentes públicos e empresários atuam em uma forte consonância para transformar, produzir e reproduzir o capital através do território, tudo isso desprovido de qualquer senso ético com a sociobiodiversidade lugar. O contrário disso, subjuga-se regiões de vegetação nativa, meros empecilhos ao fator de crescimento econômico, pensado e projetado por sujeitos da ação política, empresarial, financeira, movidos por perspectivas que se contradizem ao próprio desenvolvimento do lugar, utilizando-se das regiões brasileiras como meros produtores e receptáculos, fontes de recursos de capital imediato ou de curto prazo, ignorando ou excluindo toda e qualquer forma de vida existente ali, incapaz de compreender outros benefícios advindos de se pensar, planejar e executar de forma integral o potencial já existente na mesma região.
É marcante nas interações e expressas no território ações vinculadas ao padrão mundial de poder sobre as relações sociais constituídas a partir da co-presença, tal qual em Quijano (2002), de três permanente elementos: dominação, exploração e conflito. Elas, afetam diretamente quatro básicas áreas da existência, e essência, social, resultantes e expressivas da disputa por seus controles, recursos e produtos: o trabalho, o sexo, a autoridade coletiva ou pública, a subjetividade e intersubjetividade.
Compõe-se toda uma ideologia de desenvolvimento baseado no crescimento econômico, tendência global, as custas da complexidade social e ambiental do lugar, tendo o capitalismo como estrutura de controle de territórios e de seus usos, amplificando as relações entre dominação e exploração, as avessas de uma padronização orgânica a partir do potencial ali concentrado em sua diversidade.
Entende-se que somente os que vivenciam, intimamente, realidades como essas, possuem a capacidade inata de compreensão e superação dessas problemáticas territoriais a fim de produzir a devida crítica e encontrar soluções apropriadas. Assim, as Teorias do Sul, estudiosos e pesquisadores, que há muito se debruçam sobre as expressões e extensões que marcam mais de meio milênio os territórios de convívio do sul global, elaboram e geram reflexões sobre uma consciência capaz de nomear, diagnosticar, descrever essa relação colonizado-colonizador para que possa construir respostas a integralidade de e para todos os territórios e seus povos e sociedades vítimas das políticas da inimizade constituídas nesse processo de interação hierárquica social.
É importante, e lamentável ressaltar, que os grupos de sujeitos da transformação territorial do país, em sua maioria, sejam eles agentes públicos ou privados, reproduzem a mesma prática excludente do período colonial. Isso é facilmente notado na adoção da manutenção do modelo produtivo nacional, expresso no uso do território, neste caso em especial, quando se refere ao modo frenético da reprodução do capital por meio do agronegócio, focado na exportação de matéria-prima, aqui revestido com a roupagem do conceito moderno de commodities e na constante reprodução da ideologia europeia hierárquica onde a superioridade é medida pelo acúmulo de capital, subjugando todo um complexo contexto de diversidade socioambiental.
Populações tradicionais tendem a ser guardiãs de patrimônio significativo cultural e natural, além de zelar pela biodiversidade e herança cultural de seus antepassados. Pensamos que salvaguardar a manutenção desses grupos em seus territórios perpassa por executar práticas de desenvolvimento que amenizem sua vivência onde possuem laços afetivos com o lugar, recinto de experiência, convivência desenvolvedora de técnicas, fazeres, símbolos, obtidas a partir do que é efetivo a vida, a biodiversidade, aprimoradas e adaptadas em seu contexto mais integral, inter e intrageracional, tendo como elementar a sabedoria ventricular originário da relação íntima com o universo orgânico, múltiplo, complexo. Conhecimento que nasce da simplicidade e da essência que podem ser o ponto de retomada da caminhada humana em direção a continuidade e preservação da vida.
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Notas
[i] Ver Martins e Cleps Júnior (2012).
[ii] Ver Vicentini (2016, 19-44).
[iii] Em Chauí (1980, 7) o “discurso competente é aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou autorizado (estes termos agora se equivalem) porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua origem. [...] confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com o discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos com tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência”.